Renate Schipke

2.6K 40 2
                                    

Renate Schipke, trinta e cinco anos, investigadora do Departamento de Tóxicos.

Conheci Christiane quando eu era investigadora de delitos contra a lei antitóxicos. A primeira vez que ela foi convocada, após uma denúncia normal, veio falar comigo acompanhada de sua amiga Stella. Ao todo, estive com ela umas seis ou sete vezes. O meu trabalho na época era o de interrogar os viciados dependentes e conhecidos da polícia, para obter informações sobre os passadores de drogas. Existe um número elevadíssimo de denúncias, e o trabalho tem de ser feito. Assim, torna-se difícil pensar em cada caso isoladamente. No meu trabalho, sempre procuro criar uma relação mais pessoal, o que facilita muito um interrogatório positivo. No início, Christiane era muito aberta, dando-me todas as informações, com boa vontade. Chamou-me a atenção por sua humildade e deu-me a impressão de ser uma criança bem-educada. Durante a nossa primeira conversa ela parecia ainda uma menininha. Christiane sempre falou bem da mãe, e eu tenho a dizer que esta, ao contrário dos outros pais, sempre cuidou bem da filha. Muitas vezes tivemos, também, conversas por telefone. Com o passar do tempo, e após vários interrogatórios, Christiane se tornou desaforada e presunçosa. Tive que falar duramente com ela, advertindo-a de que apesar das tentativas de deixar o vício ela sempre permaneceria uma toxicômana. Foi um diálogo muito pesado. Mas não quero falar negativamente sobre Christiane. Ela também não era rancorosa. É simplesmente impossível ajudar os viciados! Eles se sentem sempre traídos, porque não entendem a causa do castigo. Em minha opinião, esses jovens são superficiais demais. Por curiosidade ou por falta do que fazer, eles começam com as drogas e depois ficam admirados com as conse- qüências. Acharia bom que Christiane fosse condenada pelo maior tempo possível, pois o choque de uma prisão, numa pessoa tão jovem, pode fazer com que ela melhore. Assim espero.

*** 

Quando me vi no metrô queria chorar de tanto ódio. Fui realmente uma estúpida em aceitar o chocolate e o bolo daquela nojenta policial e deixar que ela me fizesse cair na armadilha. 

Após ter atendido a mais dois clientes na Estação Zoo e ter comprado heroína na Kurfürstendammstrasse, fui para casa. Meu gato, na cozinha, mal conseguia ficar de pé. Aliás, ele já andava adoentado há alguns dias. Naquele momento ele estava com um olhar tão triste, soltando uns miadinhos tão sem força, que pensei que também fosse morrer logo. Eu me preocupava mais com o meu gato moribundo do que comigo mesma. O veterinário me havia dado extrato de sangue de boi. Mas ele não comia absolutamente nada. O pires estava sempre cheio, mas ele nem sequer levantava a cabeça. Senti, naquele momento, uma enorme vontade de me aplicar uma picada. Busquei meus utensílios e aí me ocorreu uma idéia. Puxei um pouco do sangue de boi na ampola e o injetei na goela do gato. Inerte, ele me deixou agir. Depois levei algum tempo até limpar os meus utensílios de forma a poder utilizá-los em mim mesma. Piquei-me, mas o resultado não foi lá essas coisas. O medo que sentia de morrer sozinha me apavorava. No fundo, eu queria morrer, mas antes de me picar sentia medo da morte. Talvez a presença do meu gato fosse a razão da minha angústia. Afinal, que negócio mais chato; morrer sem ter vivido. Não via saída. Minha mãe e eu nunca mais trocamos palavras sensatas desde o dia em que ela compreendeu que eu havia recaído. Gritava pela casa, mas ela simplesmente me olhava com um ar desesperado. A declaração que assinei foi o suficiente para me levar às bancas do Tribunal de Menores, e corri o risco de ser condenada. Sabia muito bem que minha mãe ficaria muito feliz se tivesse podido me ajudar para que as coisas não chegassem àquele ponto. Ela não parava de telefonar para todo canto (Serviço Social, Centro Antidrogas) e parecia cada vez mais desesperada, pois percebera que ninguém podia ou queria nos ajudar. Tudo o que ela conseguia fazer eram ameaças de me enviar para sua família, longe de Berlim. Finalmente, num belo dia de maio de 1977, meu pobre cérebro acabou reconhecendo que só me restavam duas soluções: overdose a curto prazo ou uma séria desintoxicação. Deveria decidir-me sozinha. Não podia mais contar com Detlef e não queria torná- lo responsável pela minha decisão. Fui ao conjunto Gropius, ao Centro de Jovens, aquele dirigido por um pastor, onde minha carreira de viciada começou. O Centro estava fechado: não conseguindo mais controlar o problema da heroína, tiveram que fazer do Centro de Jovens um centro antidrogas. Era necessário um centro antidrogas só para o conjunto Gropius, tal era o grau de estragos feitos pela heroína desde que aparecera por ali, há dois anos. Eles me disseram o que eu já sabia há muito tempo: a minha única chance era uma boa terapia. Deram-me o endereço da Drogeninfo e da Synanon, porque estas conseguiam melhores resultados. Eu tinha um certo receio dessas terapias, pois, segundo diziam na "cena", elas eram bastante rigorosas. Nos primeiros meses era pior do que uma prisão. Na Synanon, era preciso até deixar que nos raspassem o cabelo. Era uma maneira de nos conscientizar de que queríamos começar vida nova. Pensei: "Isto eu não vou conseguir, deixar cortar meu cabelo à la Kojak, nem pensar!" Meus cabelos eram para mim a coisa mais importante, pois com eles escondia o meu rosto. Achava que se eles cortassem os meus cabelos acabaria me suicidando. A conselheira achava, também, que eu não tinha a menor chance de entrar na Drogeninfo ou na Synanon, pois eles já não tinham mais vagas. Uma nova admissão seria muito difícil, seria pelo menos necessário estar com alguma saúde e provar-lhes, através de uma autodisciplina livremente consentida, que tínhamos força de vontade para nos desligarmos do vício. Ela também reiterou que eu era muito jovem, nem ao menos tinha completado quinze anos, por- tanto, era ainda uma criança. Seria, para mim, muito difícil preencher as exigências deles. Aliás, para as crianças eles ainda não tinham uma terapia determinada. Eu me propus ir à Narconon. Narconon era o centro terapêutico da Igreja Cientológica, uma seita. Conheci alguns viciados que ali estiveram e disseram que não era mau. Se pagássemos adiantado, não faziam exigências para a admissão. Tínhamos direito a nos vestir como queríamos, levar discos, e aceitavam até animais. A conselheira me mandou refletir, pensar na razão pela qual tantos viciados disseram que na Narconon a terapia era completamente descontraída, e continuavam a se picar. Ela não conhecia nenhum exemplo de terapia bem-sucedida na Narconon. Mas, o que fazer se não tinha nenhuma chance de ser admitida em outro lugar? Ela me deu o endereço da Narconon. Em casa, dei um pouco de extrato de sangue de boi para o meu gato, na seringa. Quando minha mãe voltou do escritório, anunciei-lhe: — Vou me desintoxicar totalmente na Narconon. Serão alguns meses ou talvez um ano. Depois estarei limpa para sempre. Minha mãe demonstrou não acreditar em uma só palavra minha. Nem sequer tentou obter informações sobre a Narconon. Mergulhei de cabeça nessa história de terapia. Tinha a impressão de renascer. Nada de clientes naquela tarde e não tomei nada. Iria me privar da droga antes de entrar para a Narconon. Eu não queria começar pela tortura do quarto de isolamento. Queria chegar limpa, para estar em igualdade de condições com os demais internos. Queria provar-lhes imediatamente que estava decidida a deixar a droga. Fui dormir bem cedinho. O gato estava cada vez pior. Eu o instalei a meu lado, no travesseiro. Estava muito orgulhosa de mim. Faria meu tratamento sozinha, com minha própria vontade. Que outro viciado poderia dizer o mesmo? Quando lhe anunciei minha decisão, minha mãe reagiu com um sorrisinho incrédulo. Ela não tirou nenhum dia de férias. Para ela, meus tratamentos quase faziam parte do cotidiano, e não acreditava mais neles. Eu estava sozinha. Na manhã do dia seguinte tive uma crise. Talvez a pior de todas. Mas tinha a certeza de que iria agüentar a barra. Quando me sentia mal de verdade, pensava: "É só veneno que sai do seu corpo. Você vai viver porque nunca mais vai se envenenar". Quando adormecia, não tinha pesadelos e sonhava com o que seria minha vida depois da terapia. Maravilhosa. Quando, já no terceiro dia, as dores tornaram-se mais suportáveis, só via o paraíso, como num filme, diante dos meus olhos. Cada vez a coisa tornava-se mais concreta. Continuava freqüentando as aulas até a minha formatura. Tinha, também, minha moradia própria. Um VW conversível diante da porta, que eu dirigia, quase sempre, com a capota baixada. O apartamento era no meio do verde. Em Rudow ou talvez em Grunewald. A construção era antiga, mas nem de longe se parecia com as construções burguesas do Kurfürstendamm, com seus tetos altos e feitos de estuque. Também não era uma casa, onde a entrada era um salão, coberto por tapetes vermelhos, muito mármore e cheio de espelhos com nomes gravados em letras douradas. Não era, portanto, nada que fedesse a riqueza. A riqueza, assim eu imaginava, significava hipocrisia, agitação e stress. Eu queria o meu apartamento num edifício simples, com duas ou três peças, tetos baixos, janelas pequenas, com uma escadaria de madeira, onde houvesse sempre um cheirinho bom de comida, e que os vizinhos fossem pessoas amáveis ao nos cumprimentar todos os dias: "Como vai, tudo bem?" A escada deveria ser estreita o suficiente para que a gente esbarrasse um no outro ao passar. Todos na- quele edifício trabalhavam muito, mas viviam felizes. Não havia brigas nem inveja. Todos se ajudavam mutuamente. Eram, por isso, completamente diferentes daqueles ricos nojentos que moravam nos altos edifícios do conjunto Gropius. Ali, todos viviam tranqüilos. No meu apartamento a peça principal era o quarto de dormir. Minha cama, muito larga, coberta com um tecido escuro, estava encostada na parede do lado direito. Tinha duas mesas-de-cabeceira (a segunda era para Detlef) e um vaso com palmeiras. Além disso, o quarto estava cheio de plantas e flores. A parede atrás da cama era forrada com um papel que não estava à venda no comércio: nele havia desenhos de um deserto, gigantescas dunas de areia e um oásis. Sob as palmeiras, beduínos vestidos de branco e bebendo café, sentados em roda e totalmente à vontade. A paz. O meu lado era o esquerdo da cama, sob a janela do teto. A cama estava instalada como na Arábia ou na Índia, cheia de almofadas, tendo ao lado uma mesa baixa e redonda. Era lá que eu passava minhas noites na mais completa calma. Longe de toda agitação, sem angústia nem problemas. Minha sala de estar era muito parecida com o quarto. Plantas, tapetes. No meio dela havia uma grande mesa de madeira rodeada de cadeiras de palha. À mesa, estavam sempre os meus melhores amigos. Bebíamos chá, e eu cozinhava para eles. Nas paredes, prateleiras carregadas de livros. Livros legais, escritos por pessoas que encontraram a paz e que conheciam muito bem a natureza e os animais. Essas prateleiras eu mesma as fabricara, como a maior parte dos meus móveis, pois não encontrara nas lojas peças que me agradassem. Não queria coisas para impressionar, mas apenas móveis que não tivessem como única função mostrar que custaram uma fortuna. E não havia portas em meu apartamento. Havia apenas cortinas, pois as portas batem, fazem ruído e agitação. Tinha um cachorro, um rottweiler, e dois gatos. Desmontei o banco traseiro do meu carro para que o cachorro ficasse mais à vontade. À noite preparava o jantar. Tranqüilamente e devagar, não como minha mãe, que sempre cozinhava às pressas. Um ruído de chave na fechadura. Era Detlef que voltava do trabalho. O cachorro pulava em cima dele. Os gatos se eriçavam e vinham se esfregar contra as suas pernas. Detlef me beijava e sentava-se à mesa para jantar. Isso tudo era o que eu sonhava naquela grave crise de abstinência da H. Só não sabia que era um sonho. Aquelas imagens pareciam, para mim, a realidade de depois de amanhã. Depois da terapia. Nunca imaginava que pudesse ser de outra forma, a tal ponto que, na noite do meu terceiro dia de tratamento, disse a minha mãe que terminada a terapia mudaria para meu próprio apartamento. No quarto dia já me sentia tão bem que até consegui me levantar. Ainda tinha vinte marcos, guardados no bolso de meus jeans. Esse dinheiro deixava-me inquieta, porque vinte marcos eram exatamente a metade dos quarenta. Pensei então: "Se você ao menos tivesse mais vinte marcos, poderia ir comprar a sua última dose de heroína, como des- pedida, antes de ir amanhã pela manhã para a Narconon". Falava com o meu gato doente. Dizia-lhe que não seria assim tão ruim se eu o deixasse por apenas duas horas sozinho. Com a minha agulha de injeção dei-lhe chá de camomila com um pouco de açúcar de uvas — a única coisa que ele ainda segurava no estômago — e disse1. — Você não vai morrer. Eu só queria andar, mais uma vez, pelo Kudamm, pois sabia que na Narconon não nos deixavam sair sem acompanhante. Queria sentir a última picada, pois o Kudamm, sem heroína, era uma merda. Mas me faltavam os tais vinte marcos. O jeito era fazer mais uma viração, ou seja, procurar um cliente. Só não queria era me encontrar com Detlef na Estação Zoo pois, se eu lhe contasse que fora bem-sucedida na minha abstinência e que estava apenas procurando um cliente para me despedir totalmente da droga, ele certamente me daria a maior gozada da paróquia. A idéia me ocorreu no metrô: vou me deixar paquerar por um automobilista. Pensei nisso por causa dos vinte marcos, que era mais ou menos o preço. 

Eu Christiane F. 13 Anos Drogada e Prostituída.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora