T H R E E

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Eu trabalhava no Café há pouco mais de quatro anos. No começo, eu apenas fazia bicos: limpava mesas, servia clientes, organizava o mural de Amélia — dona do lugar—, anotava pedidos e o que mais fosse necessário. Depois, quando o fluxo de clientes começou a aumentar, Mélie decidiu que não podia mais se virar sozinha e contratou a mim e Ashley — uma garota, cujo maior propósito era irritar o máximo de pessoas possíveis, a começar por mim.

Embora Losery fosse uma cidade pequena e tudo fosse naturalmente perto, o Café possuía uma localização privilegiada, estando no centro da cidade e ao alcance de qualquer estudante, trabalhador ou aposentado.
Por ser pequeno e acolhedor tornava-se ideal para trabalhar, descansar, encontrar amigos ou se esconder, como eu gostava de fazer.

Ali, Amélia fazia tudo o que podia para que os clientes estivessem confortáveis, tanto que o seu lema era:

— "Um café e um sorriso. Sempre! Independente da situação sirva um café e ofereça um sorriso, não sabemos quando, mas isso pode mudar o dia de alguém!".

Para Mélie, os pequenos atos capazes de salvar o dia arruinado de alguém eram de extrema importância e indispensáveis. E, sendo tão adepta a estratégias de acolhimento, ninguém conseguia ficar completamente mal perto dela. Afinal, depois que a sua própria vida foi arruinada pelo ódio e pela tristeza, Mélie havia aprendido uma coisa ou duas sobre resgatar a coragem e a força, embora Ashley gostasse de dizer que, às vezes, era apenas invasivo e irritante.

Por esse e por outros infinitos motivos — dentre eles o vício por cafeína e paz — o Café havia se tornado a minha segunda casa. Eu passava mais tempo ali do que em qualquer outro lugar, servindo, preparando e ingerindo doses desmedidas de cafeína. No entanto, isso tornava o fim do expediente meu inimigo declarado. Ver Mélie deixar o escritório no fim da noite era e sempre seria devastador.

— Crianças, hora de fechar. — Anunciou e virando os seus pequenos olhos castanhos para mim, lançou um sorriso encorajador, antes de cruzar os braços sobre o peito. — Não faça essa cara de cachorrinho chutado, Lyss. Tenho certeza de que nos veremos amanhã, até porque, não importa quantas folgas eu te dê, você sempre me ignora e vêm trabalhar. — Revirou os olhos. — Aliás, o que faremos quando alguém resolver me acusar de exploração?

Pendurando o meu avental no gancho que ficava preso à porta da cozinha, eu ri:

— Você jamais vai encontrar uma funcionária tão dedicada quanto eu!

— Já que tocamos no assunto, — Prendendo os seus longos cabelos castanhos num rabo alto, Ashley começou — você podia não vir amanhã. Talvez, devesse pegar umas férias! É sério, já deu de Alyssa para mim. — Alfinetou.

Asheley era apenas implicante. Nada no mundo era capaz de agradá-la e a única forma de torná-la minimamente suportável era ser útil à algum plano dela, o que não acontecia com frequência, já que ela preferia cortar as suas mãos a precisar de alguém.

Palavras dela e não minhas.

— Um café, — empurrei minha xícara pelo balcão — e um maravilhoso vá se ferrar! — disse, exibindo um sorriso forçado.

Colocando-se entre nós, Amélia interveio, embora eu ainda pudesse ver os olhos estreitos de Ashley sobre mim:

— Nada disso, garotas. Não podemos estragar o dia incrível que tivemos com briguinhas bobas! Vão para casa e descansem, porquê...

Novos dias são novas oportunidades! — completamos juntas.
Esse era o mantra para se manter a paz no fim dos expedientes e Mélie adorava nos fazer repeti-lo.

Além de mantras e lemas, Amélia havia criado uma parede de frases que ficava próxima ao caixa. O intuito era preenchê-la com frases de incentivo para que os clientes se sentissem motivados e compreendidos, por isso, todos os dias ela trazia algo novo para colar ali, incentivando a todos que fizessem o mesmo.

A verdade era que eu amava o Café com todas as minhas forças, então, a volta para casa era o momento mais cruel dos meus dias.

Puxei minha mochila que estava debaixo do balcão e jogando-a sobre o ombro, acenei para Amélia e, com um longo suspiro encarei a noite fria, sabendo que a volta para casa jamais seria tão longa quanto eu desejava.


🥀

Todas as noites, quase de modo automático, eu entrava em casa e corria até o segundo andar para ver como estava a porta do quarto dos meus pais. No entanto, ela nunca parecia diferente. As mesmas frestas de luz escapavam pelos pequenos vãos da porta e o cômodo parecia tão silencioso quanto o resto da casa. A porta permanecia trancada, em um lembrete quase palpável da distância existente entre mim e a vida que eu costumava ter.

Naquela noite o cenário não foi diferente, mas enquanto tudo ali era o mesmo, as pequenas mudanças cresciam dentro de mim. E talvez, fosse esse o motivo pelo qual eu não me sentia tão desapontada com a falta de reação da minha mãe.

Com um suspiro, larguei minha mochila sobre a cadeira que estava ao lado da porta do meu quarto e analisei o lugar. Sobre a mesa de estudos havia uma pilha de livros da biblioteca que precisavam ser devolvidos, o pequeno globo com a Estátua da Liberdade continuava caído no chão e meus desenhos antigos permaneciam espalhados por todo o quarto, como lembretes da minha incapacidade de desenhar algo novo.

Tudo ali gritava desesperadamente por arrumação, inclusive eu, mas eu podia fazer isso amanhã. Ou talvez semana que vem. Quem sabe quando estivesse de mudança?

Muito provavelmente quando estivesse de mudança.

Fechei a porta com força para que minha mãe soubesse que podia perambular pela casa sem correr o risco de trombar comigo e caminhei até o globo, tirando-o do chão e deixando-o na mesa, antes de me jogar na cama.

Assim que fechei os olhos, pude sentir o peso que aquele dia havia atribuído ao meu corpo. Fazia mil e noventa e cinco dias desde que as coisas ficaram realmente difíceis. Três anos desde que mudei todas as minhas rotas e planos.

Fazia tanto tempo e eu ainda nem havia aprendido a lidar com o tempo passando.

Do lado de fora, eu podia ouvir os passos cautelosos de minha mãe, mas nada em mim gritava. Não havia mais nada da vontade insana de correr até ela e gritar até ela entender que era preciso lidar com a vida. Ou com a morte.

Três anos de abandono total foram mais que o suficiente para eu aprender a me virar sem ela.

Abri os olhos e encarando o teto, tentei processar todos os acontecimentos do dia, dando total destaque a cena demasiadamente constrangedora no estacionamento. Só a lembrança daquele par de olhos castanhos esverdeados e do sorriso zombeteiro eram o suficiente para fazer minhas bochechas esquentarem em vergonha.

Trevor Holder.

Esfreguei os olhos e me levantei, certa de que reviver constrangimentos não me ajudaria a esquecê-los.

🥀

Amélia estava errada. Novos dias não eram novas oportunidades. Bom, não se esperássemos que a vida fizesse o trabalho sujo. Esforços — por mais cansativos que fossem — eram necessários, mas de todos, sair da cama era a parte mais complicada.

Terça era o dia dos waffles e eu pude sentir o cheiro irritante da massa queimada que papai insistia em tentar fazer, antes mesmo de abrir os olhos.

Eu nunca pensei que sentiria falta das tentativas frustradas de papai na cozinha, mas agora, tudo o que eu tinha eram memórias distorcidas de tempos melhores. Lembretes de que a vida era uma vadia cruel que nos deixava ciente da importância das pequenas coisas apenas quando elas se tornavam absolutamente inalcançáveis.

Depois que ele se foi, todas as terças tornaram-se cruéis e intermináveis. Mas conforme o tempo passava mais eu entendia que o dia não importava realmente, porque a parte dolorosa era a ausência de alguém que fazia a minha vida ter sentido.

Ainda assim, enfrentei todos os meus dias infernais, notando que seguir em frente envolvia passar por cima de todos os momentos ainda mais cruéis que viriam.

Abrindo os olhos, empurrei a coberta para longe e me sentei, buscando coragem para minha corrida matinal.

Ignorando o chão gelado, levantei e olhei para o céu escuro uma vez, antes de seguir para o banheiro. Diante do meu reflexo no espelho, prendi o cabelo e repeti para mim mesma:

— É mais um dia cruel e você vai sobreviver a ele como sobreviveu a todos os outros!

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