I - O impressionismo social

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"O ser humano pode apagar seus erros em uma folha de papel. Mas não pode apagar as manchas que ficam sem rasgá-la."


1979, Calcéria.

No caminho para a clínica, vi pequenas gotas de chuva atingirem o vidro do carro. O céu estava cinzento e triste, como se estivesse adivinhando que dia era aquele.

Era o dia em que ela havia desaparecido da face da terra. E como doía pensar na única pessoa que me entendia.

Quando era mais novo, não acreditava quando os adultos diziam que ser criança seria a melhor época da minha vida. Cresci, envelheci e pude ver que estavam certos, afinal de contas. Não era fácil esconder para o mundo algumas coisas. Estava longe de ser apenas um psiquiatra que ia em eventos e dava palestras sobre a mente humana.

Devo admitir, minha vida era vazia. Até quando eu seria refém de uma das minhas várias máscaras?

Isso morrerá comigo.

Não iria correr o risco de estragar tudo o que conquistei. Ninguém compreendia a ninguém.

Exceto Laura. Ela me entendia tão bem, que fora capaz de viver por mim e para mim por todo o resto de sua vida moribunda.

Ainda conseguia ouvi-la rir quando todos ao nosso lado choravam. Era incrível a forma com que ela enxergava o mundo, mesmo depois de passar por tantas adversidades. Ninguém merecia passar pelo que ela passou. Tanto sofrimento e falsa esperança. E, no final, terminou com terra sobre a cabeça e flores murchas sobre o caixão.

Perdido em meus devaneios, não percebi que o sinal estava verde e que eu bloqueava a rua. Xingamentos e buzinas enfurecidas tomaram conta do trânsito. Um homem, que quase não cabia em seu fusca vermelho, colocou a cabeça para fora da janela e me apontou o dedo do meio. Apenas acelerei, sem me preocupar com as ofensas.

Enquanto dirigia pela avenida principal, abri a janela de modo que somente o vento frio passasse por ela e se chocasse contra meu rosto. Imprudentemente, fechei os olhos por 2 segundos e senti meu sangue pulsar novamente. Às vezes me esquecia o quanto era bom me sentir vivo.

Quando cheguei no estacionamento, encontrei Rosa, uma de minhas velhas pacientes, indo em direção à clínica. Protegia-se do chuvisco com um guarda-chuva preto; pela expressão atordoada, deduzi que estivesse tendo uma recaída. Pobre mulher. Já beirava 60 anos e vivia sozinha há quase 10 anos; os filhos não faziam questão de visitá-la.

— Bom dia, dona Rosa — cumprimentei, pegando em seu ombro. Ela pareceu se assustar com a minha súbita presença, mas recuperou-se rapidamente.

— Oh! — ela sorriu, enrugando o rosto. —Doutor Dimas! O senhor fica bem de barba! — pausou, tentando se recordar do que falava. — Ah! Venha, se proteja dessa chuva ou pegará uma gripe.

Obedeci e caminhei ao seu lado segurando seu braço. Enquanto conversávamos, Ana, uma de minhas atendentes, já havia aberto a clínica. E, pelo cheiro intenso de lavanda, não economizara no aromatizante. O cheiro combinava com as cores calmas do lugar.

— Bom dia, doutor! — cumprimentou Ana, ajeitando o blaser branco. — Ah, dona Rosa, o que ouve? — perguntou, pegando a pasta onde ficavam as fichas dos pacientes.

— Estou visitando o doutor! — respondeu Rosa com alegria.

— Prepare a ficha dela, Ana. Ela precisa assinar dessa vez — sussurrei. Nas últimas consultas, Rosa não havia assinado a papelada, o que me custou um pequeno prejuízo financeiro. Para ela, não iria mudar nada. Afinal, o plano de saúde cobriria todas as despesas.

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⏰ Last updated: Jul 20, 2018 ⏰

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O Carmesim (breve hiatus)Where stories live. Discover now