II

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— Você me parece familiar... Eu já te ameacei antes?

Eu estava enganada sobre as chances de encontrar Amábile. Quer coisa mais clichê do que o fato de ela estudar na mesma escola que eu? Mais clichê ainda era o fato de nunca tê-la notado. Não que ela fosse uma Vênus ou algo do tipo. Ela estava longe de ser a mais bonita da escola, mas alguém igualmente problemática e bonita não passava despercebida pelas fofocas colegiais.

Pois então: não apenas a reencontrei, como descobri que, na verdade, minha convivência com ela era mais frequente do que eu imaginava – e a partir de então apenas aumentaria.

— Desde quando você estuda aqui? – Amábile cumprimentou-me com um beijo no rosto estalado, mesmo diante da minha falta de resposta ou de ação. – Nunca te vi.

A escola era grande o bastante para que alunos de turmas distintas sequer chegassem a se conhecer. Provavelmente era o nosso caso, levando em conta, ainda, que eu não tinha qualquer interesse em amizades. Não, a palavra certa não era interesse: era capacidade. Eu simplesmente não conseguia conversar com as pessoas de maneira decente.

— Sempre e-estudei. – Gostaria de não gaguejar, mas o controle sobre minha fala era algo que me faltava. Ficava ansiosa com qualquer olhar sobre mim. Invisível... Preferia ser invisível.

— Ótimo. – Por um momento ela pareceu genuinamente feliz por me encontrar. Dúvida: eu deveria achar sua reação suspeita ou reconfortante? – Vamos tomar sorvete hoje, às 15h. Não falte ou vou fazer você desejar estar morta.

Ameaça e convite em uma mesma frase: aquele era o começo do fim.



Não consegui me concentrar em aprender durante toda a manhã. Não que em geral eu fosse a mais aplicada das alunas, mas naquele dia em particular minha mente ficou vagando entre meus encontros com Amábile, mais especificamente no motivo por trás de seu convite.

Entenda: nunca tive amigos; no máximo tive pessoas que amigavelmente se afastaram de mim. A parte boa é que não teve sofrimento... Não muito. A verdade é que não há dor se não há perda e só pode haver perda se você tinha algo antes.

E eu não tinha.

Por essa razão, o convite não me saía da cabeça. A não ser pelos aniversários de infância, nunca fui convidada para nada. Nem festas, nem cinemas... Nem mesmo para o lanche do intervalo. Meu único companheiro, meu fiel escudeiro, o único que conhecia meus pensamentos era meu caderno de desenhos.

E eu estava bem com isso. Estava conformada com o fato de não ter nada a oferecer aos outros e, por isso, ser deixada de lado. Mas o desejo de Amábile pela minha companhia por duas vezes não entrava bem na equação da minha vida.

Parecia uma matemática errada, como tentar dividir algo por zero. Parte de mim dizia, aliás, que encontrá-la seria problema. Os filmes adolescentes e séries de televisão estavam lá para não me deixar mentir: só existia uma situação em que alguém como ela se aproximaria de alguém como eu. E eu sabia quem sairia machucada.

Mas outra parte de mim queria ir. O que de melhor eu tinha para fazer? Passear com o Sabujo?



Às 14:40, eu estava sentada em uma das mesas do lado de dentro da sorveteria, perguntando-me se aquela era a decisão certa. Ainda tinha tempo de mudar de ideia, mas Amábile me ameaçara de morte se eu furasse. Era melhor ficar onde estava.

Quando, às 15:20, ainda estava sozinha, cheguei à conclusão que eu realmente era idiota. Devia ter acreditado nos meus instintos. Garotas como Amábile não são amigas de garotas como eu. Simples assim.

Mesmo decepcionada, acabei decidindo ficar. Não queria voltar para casa. Aliás, não havia um dia que eu quisesse. Pedi meu sorvete e comecei a desenhar. Os traços saíram imprecisos em virtude do meu humor. Nenhuma forma sequer me agradava, até que comecei a riscar por cima, já não querendo ver nada.

Um garrancho. Era tudo que eu tinha. Assim como o vazio dentro de mim. Idiota. Quem iria querer ser minha amiga de qualquer forma? Droga.

Em um súbito de raiva, rasguei a folha e a joguei amassada no chão.

— Parece que o Sabujo teve a quem puxar.

Amábile.

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