Algo do Passado

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—mamãe, mamãe, mamãe...

As vezes eu acho que o Kael é uma das únicas crianças na face da terra a gostarem tanto de chamar alguém de "mamãe", mas ainda sim, quero sorrir quando ele faz. Eu o ergo em meu colo e o abraço com força, Kael sorri de ponta a ponta e beijo sua testa, a professora dele me entrega a mochilinha.

—hoje o Pablinho aprendeu a fazer xixi no vaso—explica a Senhora Donovan toda contente.

Paro de Sorrir, porque essa coisa de "Pablinho" já está ficando insuportável, mas acho que virou um ciclo vicioso, eu não sei nem como cortar quando as pessoas começam a chamar o Kael de Pablinho, acho que é porque eu não quero soar mais rude, não quero parecer alguém chata que ficar repetindo feito um papagaio "o nome dele não é Pablinho, é Kael", mas sei que em parte, ter um filho com uma "personalidade" da cidade da nisso.

Quem mandou eu me envolver com aquele safado?

—muito obrigada senhora Donovan.

Os dias aqui são sempre iguais, as vezes perto do tédio, mas nada acontece de diferente na cidade a pelo ou menos uns 100 anos, não temos ladrões, não temos homicídios, e da última vez que alguém tentou se matar, a própria pessoa desistiu, o senhor Freeman, da rua 12, ele é ex militar aposentado, virou alcoólatra depois de vinte anos servindo, a mulher dele o abandonou.

As vezes ele vai no mercado comprar bebida, mas é bem daqueles tipos de pessoa que gostam de ficar contando histórias e tal, não tenho nada contra, até gosto, mas pelo menos duas vezes nos últimos cinco anos ele tentou se matar, se jogando de cima da ponte do parque da cidade, não tem altura nem de cinco metros, e o lago é tão raso que o Kael consegue ficar em pé e a água bater em suas canelas.

—mamãe, mamãe, quero Sorvete!

—tá, a mamãe vai te levar na sorveteria da Peggye, que tal?

—ebaaa!

Os dias são quentes no verão e frios no inverno, Floyd é minúscula, não há mesmo muito a se fazer aqui, mas eu já me conformei, acho que nunca irei querer sair daqui mesmo, apesar de todos os pesares é uma cidade tranquila e longe da violência da cidade grande.

Meus pais nasceram aqui, meus avós vieram da Carolina do Norte quando se casaram, eu nasci aqui e o Kael também, acho que era para ser, apesar de querer muito ter ingressado na universidade acho que deixei esse sonho de lado quando me tornei mãe.

Não me arrependo.

Acho que sou mesmo como a maioria das vizinhas da minha mãe me chamam, medíocre, alguém que não tem muita ambição, a maioria das minhas colegas da escola foram para grandes universidades, mas também, eu sei que se decidisse ir, meus pais teriam que vender algum rim ou as córneas para o mercado negro, nem toda a população americana tem uma vida super chique como nos filmes, eu faço parte de um grupo seletivo de pessoas classe baixa, e tenho muita sorte de me enquadrar apenas nessa classe, não acho que teria 5 mil dólares por mês para pagar uma universidade, nem metade de uma bolsa, nesse sentido também sou bem realista.

Nunca pediria para os meus pais que gastassem os fundos da poupança com uma universidade para mim, meu irmão mora conosco e é um inútil, em parte isso é culpa da mamãe, que acha que ele tem que ficar dentro de casa jogando vídeo game enquanto nós três trabalhamos duro para sustentar a casa.

Quando me casei com o Pablo nos mudamos para uma casa alugada, mas quando ele foi embora, eu tive que voltar para a casa dos meus pais, e não foi a pior coisa que me aconteceu, eu tinha tantos planos, mesmo casada com ele cheguei a pensar inclusive até a fazer um curso na comunidade local, mas isso não aconteceu.

Borralheira * DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora