Parte II

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1. Os contrabandistas

DANTÈS AINDA NÃO PASSARA um dia a bordo, mas já percebia com quem estava lidando. Sem ter cursado a escola do abade Faria, o digno capitão da Jeune-Amélie, nome da tartana genovesa, conhecia quase todas as línguas faladas em torno desse grande lago denominado Mediterrâneo; do árabe ao provençal. Isso lhe proporcionava — poupando-lhe intérpretes, gente sempre inoportuna e às vezes indiscreta — grandes facilidades de comunicação, fosse com os navios que encontrava no mar, fosse com os pequenos botes que avistava ao longo do litoral, fosse enfim com as pessoas sem nome, sem pátria e sem condição identificável, como as há sempre nas pedras dos cais vizinhos aos portos marítimos, as quais vivem desses recursos misteriosos e ocultos que convém efetivamente acreditar provir-lhes diretamente da Providência, uma vez que não dispõem de meio de subsistência visível a olho nu. Logo, presumimos que Dantès estivesse a bordo de uma nau de contrabando.

Daí a recepção desconfiada com que o capitão recebera Dantès a bordo: como era muito conhecido de todos os agentes alfandegários da costa e, como havia entre estes cavalheiros e ele uma troca de astúcias mais engenhosas umas que as outras, ele pensara primeiro que Dantès fosse um emissário do maldito fisco, utilizando um ardiloso recurso para desvendar alguns segredos do ofício. Mas a maneira brilhante com que Dantès se saíra na prova, quando havia manobrado o navio, o convencera quase completamente; depois, na sequência, quando avistara aquela tênue fumaça flutuar como um penacho acima do bastião do castelo de If e ouvira o barulho distante da explosão, passou-lhe pela cabeça que acabava de receber a bordo aquele a quem, assim como para as entradas e saídas dos reis, concediam-se as honras do canhão; isso já o preocupava menos, convém dizer, do que se o recém-chegado fosse um agente alfandegário; mas essa segunda suposição, como a primeira, logo desaparecera diante da perfeita tranquilidade do seu recruta.

Edmond desfrutou então da vantagem de saber quem era seu capitão sem que seu capitão pudesse saber quem ele era; de todos os lados que o velho homem do mar ou seus companheiros o assediaram, ele resistiu e não fez nenhuma confissão: fornecendo inúmeros detalhes sobre Nápoles e Malta, que conhecia como Marselha, e mantendo, com uma firmeza que fazia honra à sua memória, seu primeiro relato. Foi então o genovês, apesar de toda a sua esperteza, que se deixou engambelar por Edmond, em favor de quem falavam sua delicadeza, sua experiência náutica e sobretudo a mais inteligente dissimulação.

E depois talvez o genovês fosse como algumas pessoas inteligentes, que nunca sabem o que devem saber e só acreditam no que lhes interessa acreditar.

Foi, portanto, nessa situação recíproca que chegaram a Livorno.

Edmond devia passar por uma nova prova ali: saber se reconheceria a si próprio após catorze anos desde que se vira pela última vez; conservara uma ideia bem precisa de como era o rapaz, ia ver agora como era o homem. Aos olhos de seus companheiros, sua promessa estava cumprida: já fizera escala umas vinte vezes em Livorno, conhecia um barbeiro na rua San Ferdinando. Foi até o seu estabelecimento para cortar a barba e o cabelo.

O barbeiro olhou com espanto aquele homem de cabeleira comprida e barba grossa e escura, que evocava uma das belas cabeças de Ticiano. Ainda não era moda nessa época o uso de barba e cabelos tão compridos: hoje o que espantaria o barbeiro seria um homem dotado de tão valiosos atributos físicos consentir em deles se privar.

O barbeiro livornês pôs mãos à obra sem maiores considerações.

Quando a operação foi concluída, quando Edmond sentiu seu queixo completamente raspado, quando seus cabelos foram reduzidos ao comprimento em voga, ele pediu um espelho e encarou a si mesmo.

Tinha então trinta e três anos, como dissemos, e aqueles catorze anos de prisão tinham, por assim dizer, promovido uma grande transformação moral em seu aspecto.

O Conde de Monte Cristo (1884)Where stories live. Discover now