Parte IV

2.1K 34 114
                                    

1. O sr. Noirtier de Villefort

EIS O QUE ACONTECEU na casa do procurador do rei depois da partida da sra. Danglars, de sua filha, e durante a conversa que acabamos de relatar.

O sr. de Villefort entrara nos aposentos de seu pai, seguido pela sra. de Villefort; quanto a Valentine, sabemos onde estava.

Após terem cumprimentado o ancião, e depois de terem dispensado Barrois, velho empregado, há mais de vinte e cinco anos no seu serviço, ambos acomodaram-se junto a ele.

O sr. Noirtier continuou instalado em sua grande cadeira de rodas, na qual o acomodavam pela manhã e da qual o tiravam à noite, sentado em frente a um espelho que refletia todo o aposento e lhe permitia ver, sem esboçar um movimento sequer, impossível em seu estado, quem entrava em seu quarto, quem saía e o que faziam à sua volta; imóvel como um cadáver, com olhos inteligentes e vivos, ele olhava seus filhos, cuja cerimoniosa reverência anunciava-lhe algum assunto oficial inesperado.

A visão e a audição eram os dois únicos sentidos que ainda avivavam, como duas fagulhas, aquela matéria humana já em grande parte preparada para o túmulo; porém, desses dois sentidos, apenas um revelava a vida interior que animava a estátua, e o olhar que denunciava essa vida interior assemelhava-se a uma dessas luzes longínquas que, durante a noite, informam ao viajante perdido num deserto que existe uma criatura vigilante no silêncio e na escuridão.

Assim, nesse olho escuro do velho Noirtier, rematado por uma sobrancelha negra, ao passo que os seus cabelos, os quais ele usava compridos e caindo nos ombros, eram brancos; nesse olho, como acontece com todo órgão humano superexigido pela ausência de outros órgãos, havia se concentrado toda a atividade, toda a habilidade, toda a força, toda a inteligência antes distribuídas em seu corpo e em seu espírito. Claro, faltavam-lhe o gesto do braço, o som da voz, a atitude do corpo, mas o olhar poderoso compensava tudo. Ele ordenava com os olhos, agradecia com os olhos; era um cadáver com olhos vivos, e às vezes nada era mais assustador que esse rosto de mármore, sobre o qual se acendia a cólera ou brilhava a alegria. Apenas três pessoas eram capazes de compreender essa linguagem do infeliz paralítico: eram Villefort, Valentine e o velho criado que mencionamos. Mas, como Villefort apenas raramente procurava o pai, só o fazendo, por assim dizer, quando não havia outra saída; e como, quando estava com ele, não procurava agradá-lo tentando compreendê-lo, toda a felicidade do velho repousava em sua neta, e Valentine conseguira, graças ao devotamento, ao amor e à paciência, compreender em um olhar todos os pensamentos de Noirtier. A essa linguagem muda ou ininteligível para os demais, ela respondia com toda a sua voz, toda a sua fisionomia, toda a sua alma, de maneira que se estabeleciam diálogos animados entre aquela moça e aquela suposta argila, agora quase pó, que, apesar de tudo, ainda era homem de saber imenso, de perspicácia inaudita e de vontade tão poderosa quanto pode sê-lo a alma presa na matéria pela qual ela perdeu a força de se fazer obedecida.

Valentine então resolvera esse estranho problema de compreender o pensamento do velho para fazê-lo compreender o dela; e, graças a esse estudo, era muito raro que, nos assuntos do dia a dia, ela não acertasse com precisão o desejo daquela alma viva ou a necessidade daquele cadáver quase insensível.

Quanto ao criado, como dissemos, na medida em que servia há mais de vinte e cinco anos seu patrão, conhecia tão bem seus hábitos que era raro Noirtier precisar pedir-lhe alguma coisa.

Villefort, portanto, não precisava do auxílio nem de um nem de outro para entabular com seu pai a estranha conversa que vinha ter. Ele próprio, como dissemos, conhecia perfeitamente o vocabulário do velho, e se não o utilizava com frequência era por enfado ou indiferença. Deixou então Valentine descer para o jardim, dispensou Barrois e, depois de ocupar o lugar à direita de seu pai, enquanto a sra. de Villefort sentava-se à esquerda, disse:

O Conde de Monte Cristo (1884)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora