A libertação de Júpiter

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Meu celular vibra sobre a mesa. Detesto ser tirado dos meus devaneios. 

É Vitória minha auxiliar, uma tímida criatura que estranhamente acalma meu coração e alivia-me dos pesos que sinto. Sua pele é muito escura destacando seus dentes brancos e demais características. Não canso de incentivar que ela sorria orgulhosa e que se exiba mais. Ela evolui, se transforma e isso me faz lembrar a metamorfose de uma borboleta. Anteriormente, Xavier era seu patrão, agora está há quatro meses aqui comigo. Retorno a ligação para ouvir o louvor que é sua voz:

— Oi Joaquim... o Seu Almeida cancelou a reunião que teria com os dois sócios dele no início da tarde. Disse que esperou o Balanço até ontem, adiou até hoje pela manhã e cansou de esperar.

— Certo. — Porque devo me perturbar, hoje perco, amanhã ganho. Encerro a ligação.

Vejo num dos fragmentos do espelho a imagem que me representa. Até meus óculos são irritantes, minha barba arruivada por fazer, olheiras escuras, ombros caídos como se eu carregasse um peso muito grande e a ansiedade que faz meus lábios ficarem comprimidos.

Esse EU não pode mais me representar, preciso me livrar dele e sorrir-me. Um sorriso carregado de ironia. Ombros alinhados, confiança. Olhar fixo, tranquilidade e intimidação. Joaquim adormece, Júpiter assume.

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— Joaquim, tem uma ligação perdida em meu celular. — Xavier me liga.

— Só retornei a sua. O que você quer?

— Eu que pergunto, olha...

— Não me ligue mais, já fez o que fez comigo no ano passado. A vida continua e não tenho mais interesse em você.

Ele solta uma gargalhada quase nefasta.

— Como é pretensioso esse homem! Também não tenho interesse em você. Ano passado deixei na sua casa alguns livros, pen drives, coisas pessoais, creio eu que as tenha guardado. Peça a um motoboy, para que me traga a chave de sua casa que eu preciso buscá-las. Caso de vida ou morte.

— Posso chamar um padre para lhe dar a extrema unção? — Respondo rindo descontraído. Não sou assim por hábito.

— O ser brincalhão não lhe cai bem, Joaquim. Aposto que está dentro de uma roupinha engomada, sapatos espelhados de tão lustros e com seus óculos de armação preta. 

— Você acha? — Provoco, pois ele conhecia o meu EU menor, de mim ele nada sabe.

— Estou certo, Joaquim. Chega de merda e faça o que mandei.

"Mandei..." entrou em meus ouvidos e encaminhou-se ao meu cérebro. Meu corpo reagiu àquela palavra, sacudindo com força toda a minha estrutura psicológica, que jamais foi algo forte. Senti um tremor muito forte que parecia vir de fora, da terra que parecia estremer. Meu rosto queimou, minhas têmporas pulsaram, todos os nervos do meu corpo contraíram. O ódio parecia algo físico e tocável. Nenhum som em volta chegava à minha percepção. Não enxergava e deixei de sentir. Nem sei por quantos minutos fiquei daquele jeito e obviamente, Xavier desligou. Fiquei transtornado por algum tempo até recolocar minha cabeça no lugar.

Meu último banho fora há quase doze horas e eu deveria estar preocupado com isso. Eu não estava. Nem com a napa do sofá rasgada que deixava uns fiapos de fibra aparecendo. Eu não olhava. Perdi a noção do tempo por mais um tempo e só então, levantei e fui para casa depois de me dar esse luxo, um luxo simples na verdade, eu só precisava desligar-me. Na verdade, eu tive um encontro comigo e isso fora de grande importância.

Levei somente dez minutos para chegar em minha casa próxima ao centro. Um bairro bem estruturado, digo, é o que o torna bom para morar. Havia um carro estacionado e um homem exaltado ao telefone que andava de um lado ao outro. Xavier parecia-me um tigre enjaulado e enfadado.

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