II - Rabisco Indefeso

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Um estranho se aproximou de Dale e o colocou sobre os ombros com muito pesar, carregando-o para um abrigo improvisado feito de rascunhos de textos aleatórios e rasuras presentes no verso da última página.

O local era curioso, fora construído com letras de diversos tamanhos e formatos, ora com palavras cursivas inteiras, ora números e equações abandonadas. Riscos abstratos ajudavam a completar a humilde construção.

O Engrafitado despertou após o desmaio. A luz que vencera as frestas nas paredes do casebre lhe feriu os olhos, voltou a cerra-los. Ao acordar outra vez, certificou-se de deixá-los entreabertos, assim, conseguiu visualizar, forçando a vista, uma figura de costas sentada no chão da peça.

- Esse deve ser quem me trouxe até aqui. - Imaginou o enfermo.

Tentou em silêncio contrair o abdômen para se levantar, mas lhe faltou as forças, permanecendo deitado sobre a maca improvisada. Observou dali, uma atividade peculiar que estava sendo praticada pelo misterioso anfitrião. Com um material, até então desconhecido por Dale, o estranho corroía com o atrito, duas ou três letras de grafite dentro de um recipiente côncavo.

Pôde notar que a ferramenta, uma espécie de faca que estava sendo utilizada para ralar os ingredientes, era dotada de um azul brilhante, e de um tom mais escuro que das linhas guias.

Abruptamente, o ser se levantou com a faca e a vasilha em mãos, se virou e andou em direção ao nosso herói, que amedrontado presumiu:

- Perfeito! Um canibal era tudo o que eu precisava.

Era possível agora, após ele ter ultrapassado o canto mais escuro do ambiente, enxergar o rosto do possível agressor. Detinha linhas ao segmento do rosto, lembrando cicatrizes, e uma altura de cinco linhas, a mesma de Dale. Sua expressão era serena, caracterizando alguém experiente no procedimento que realizaria.

- Oi, é... tenhamos calma, muita calma, você já tomou café da manhã ao menos? Os médicos afirmam que o café da manhã é a refeição mais importante do dia, talvez até mais que o almoço e...

- Eu aconselho que fique parado, talvez doa um pouco. - Instigou com um ar sombrio o indesejado indivíduo, interrompendo o apelo da vítima.

Dale podia falar, mas nada muito além disso.
Seus membros foram convocados a reagir, talvez para uma fuga, mas sem respostas aparentes.

Diante da situação, foi tomado por um grande desespero, as últimas tentativas de reação foram inúteis. Lhe restou apenas a conformidade, esperar pelo pior era a única escolha possível. - Se pudesse assim ser considerada. - Foi o que fez.

O predador se aproximou lentamente, agarrou um punhado da substância e esfregou sobre o corpo da presa, que assistira tudo com uma expressão de terror, enquanto pedia piedade com os olhos.

- Pronto, agora é só esperar...

-Seu maldito! Está me temperando para depois me devorar?! - Exclamou indignado o indefeso rabisco, enquanto o pó lhe formigava o corpo.

O ritualista gargalhou assustadoramente, e o inesperado aconteceu:

- Não seja bobo, não vou te devorar. Você é muito dramático!

Dale ficou perplexo com o desfecho, um misto de alívio com confusão.

- Desculpe se te assustei, mas devo admitir, foi engraçado ver a sua reação. - Gargalhou novamente, porém, o sorriso agora parecera mais leve.

- Bom, a expressão "borrado" nunca fez tanto sentido. - Sério? Esse trocadilho, Dale?

- O que é essa poeira? - Indagou o Engrafitado.

Induziu, puxando uma banqueta para perto da maca. - Essa poeira nada mais é do que essência de grafite. Nós, Grafitados, perdemos a consistência de nossos traços se ficarmos por muito tempo na Borda.

- Olha só... - O ouvinte se fez interessado, enquanto associava as novas informações com os acontecimentos que vivenciou.

- Pois bem, as linhas azuis mantém nossas formas, e você ficou muito tempo longe delas. Foi muito arriscado, eu te encontrei quase morto. A poeira vai reconstituir seus traços. Agora, descanse. - Concluiu com seriedade.

Aquelas afirmações todas provaram ao rabisco que, de fato, ele ainda soubera muito pouco sobre todo aquele universo e mesmo tendo muitas dúvidas, sabia que precisava do descanso.

Dale obedeceu.

Ao final de algumas horas estava completamente revigorado, pronto para prosseguir sua aventura.

As aventuras de DaleOnde as histórias ganham vida. Descobre agora