I - Perdido entre as Linhas

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Dale, nosso herói, abriu seus redondos olhos confeccionados de grafite pela primeira vez. Mesmo sendo um desenho, podia enxergar, de maneira análoga, como uma pessoa. Sua visão era clara e plena.

Deitado sobre uma superfície reta, podia sentir a textura da folha de papel em suas costas. Se tal ser possuísse de fato detectores nervosos de temperatura, Dale estaria deitado sobre um frio piso constituído de celulose.

Tentou levantar-se, meio desajeitado, semelhante a uma criança que ensaia os primeiros passos. Com pouco treino conseguiu apoiar-se firme sobre suas pernas e erguer sua cabeça. - Desenhada propositalmente esférica, pela falta de melhores atributos artísticos do autor.

Conseguiu contemplar uma visão única. Diante de si, uma imensidão aparentemente infinita e quase completamente branca, se não fosse pelas compridas linhas azuis que, em parcelo,  se postavam umas das outras, sobre todo e qualquer relevo visível daquele ambiente.

Neste mesmo instante, nosso herói se deparou com questionamentos que eram no mínimo incalaveis.

- Onde estou? - Suplicou o rabisco a si mesmo, ao mesmo tempo que se surpreendia por descobrir que possuía uma voz.

- Como cheguei aqui? E... o que é "aqui"?

Sem reconhecer o motivo, Dale sabia qual era seu nome, como se ao mesmo tempo que tivera consciência de sua existência, tivesse conhecimento também do nome que lhe foi dado. Ele simplesmente sabia, e isso só ajudava a aumentar seu anseio.

Dale precisava achar respostas, e ali, parado, tinha uma de suas poucas certezas:

- Não descobrirei nada se permanecer estático. - Convenceu-se.

O rincão onde despertou, até onde se podia enxergar, estava desértico. O rabisco se pôs a caminhar, buscando algo que não sabia ao certo o que era, na verdade, sabia: procurava qualquer coisa.

O Caderno, mundo que é o lar de Dale, é composto por inúmeras páginas, onde em cada página, duas faces são existentes.

Dale fora desenhado na frente da última página daquele caderno, e agora se dirigira ao leste de tal página.

Durante toda a extensão daquela planície, ao caminhar por alguns minutos, não encontrou um único traço, anotação ou rasura. A extensão do mundo das páginas, são em resumo, muito maiores que nossa percepção captura, pois, tudo que enxergamos pelo "lado de fora" é apenas o espaço passível de escrita e de criação.

Durante a caminhada, Dale tomou seu tempo vago para observar mais atenciosamente o ambiente, e chegou a algumas conclusões: Os céus tinham uma aparência que muito se assemelhavam com o solo; ao que pode notar, não havia nenhuma fonte de luz direta, de forma que toda a iluminação viesse, aparentemente, do reflexo de uma fonte externa àquele universo; percebeu também, que o solo onde se apoiava não era totalmente sólido, era dotado de uma certa maciez e flexibilidade.

Seguiu o traçado azul no chão para se guiar, e após algumas horas duma cansativa andança, findaram-se as linhas, que até então, sempre se fizeram presentes. Seguiu por um trecho vazio, agora, totalmente branco.

A ausência das linhas azuladas, mais do que um possível apego de nosso personagem, lhe causou um estranho desconforto, repentino e indecifrável.

Na tentativa de fazer cessar tal crescente desconforto, nosso herói apertou o passo.

Dale podia sentir seus traços perdendo a consistência, e junto a ela, suas forças.

A sensação agoniante começou a tomar todo a extensão do desenho.

Enquanto marchava em ritmo acelerado, balbuciou sua conclusão:

- Essas linhas azuis... É como se longe delas não pudesse haver... Nada. - Determinou o rabisco.

De fato, Dale estava parcialmente correto em sua dedução.
A chamada "Borda" é uma zona inabitável aos grafitados. Os mesmos, possuem um tempo limite nela, que resulta do tempo em que conseguem manter suas estruturas naquela região, ao ponto que, se ultrapassado tal limite, se desfazem por completo.

Entretanto, deduzira erroneamente sobre não poder haver mais nada por ali. E então, convenceu-se disso no instante que enxergou, enquanto ainda caminhava quase em arrasto, um vulto ao longe e a sua esquerda.

Um borrão foi o máximo que seus olhos fadigados conseguiram captar. Mesmo assim, percebeu que o vulto se mexia com lentidão e era grande o bastante para ser tido como possível ameaça.

O rabisco não parou diante daquilo. O objeto permaneceu seu trajeto até sair do raio de visão do nosso herói, e em seguida, a monstruosidade ficara para trás.

- Quem diria, essa coisa pareceu nem estar incomodada com esse ambiente, eu mal estou conseguindo caminhar. - Pensou, com um ar de ironia e medo.

O rabisco continuou seu percurso, cada vez mais debilitado. Com tortuosos passos após os outros, vencera o trajeto, chegando então no final da borda daquela face.

O cenário que encontrara era curioso. Na ponta da borda havia um abismo, porém, o céu parecia se curvar, assim, acompanhando o grau de curvatura da encosta.

Dale ficou perplexo pelo que visualizara e continuou até a beirada do abismo. Ao chegar na ponta, olhou para baixo e contemplou algo impossível. Sob aquela superfície, somente os céus se faziam presente e ao se inclinar ainda mais, pode ter certeza disso.

- Como isso é possível? - Resmungou para si mesmo.

Por um instante havia se esquecido da agonia que sentira, e num ato de desespero e coragem, Dale cerrou seus olhos, pegou impulso e saltou, despencando no limbo.

O inacreditável aconteceu.

Um segundo após o salto, o rabisco pousou sobre uma superfície. Abriu rapidamente os olhos, e era real!

Estava de pé sobre a mesma página que estivera a pouco, porém, na outra face, localizava-se em seu verso.

De alguma forma, ao pular para a morte, o personagem foi atraído para a outra face, formando uma parábola que violaria as leis da gravidade descritas por Newton. - Ora, a história é sobre um desenho em um caderno, não se deve esperar que se siga Newton tão a risca, não é mesmo?

Todavia, ainda estava na Borda, e mesmo no verso, os danos constantes permaneciam, por isso, decidiu correr mesmo suas pernas contrapondo sua vontade.

Foram necessários 7 minutos de corrida para enxergar ao longe o início das linhas azuladas, estando exaurido, a persistência era a única coisa que o faria conseguir chegar ao local que deduzira ser mais seguro.

Os últimos 30 segundos pareceram uma eternidade, mas enfim, chegara ao seu destino.

- Até que enfim... - Tossiu as palavras sem fôlego antes de desabar.

O que não esperava era que alguém, até agora não apresentado a história, presenciou seu feito.

- Nosso capítulo terminou da forma que iniciou. Nossa, que interessante! Esse autor tem cada ideia...

As aventuras de DaleOnde as histórias ganham vida. Descobre agora