Taça

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"Estava aqui, todo esse tempo", pensou Saga.

- Sinceramente não entendo tua surpresa – bocejou o deus. – Há séculos os romanos me presentearam com esta taça, que já pertenceu ao meu irmão Apolo. A irritante Atena se apoderou dela por conta de seu poder profético – batia agora repetidamente o indicador no descanso de braço. – Recobrei-a secretamente após a última contenda com Hades, no século XVIII.

Saga reconhecia uma bipolaridade familiar. Quando amável, Dioniso era irresistível, encantador; enraivecido, provoca arrepios de temor.

- Atena... Sempre Atena! Nos últimos milênios, a minha irmãzinha donzela resolveu se autoproclamar deusa da Terra. Hunf! – escarnecia. – "Amo profundamente os humanos e esta terra. E irei protegê-los" – fazia careta, enquanto a imitava.

O cavaleiro quase riu, influenciado pelas ondas de humor sarcástico que o ente emitia.

- Desde que assumiu a função, a Terra perdeu toda a diversão. Uma guerra aqui, outra ali... Festivais de ano em ano... Às vezes triênios! E as carnificinas? Os bacanais onde foram parar?! O mundo está puritano demais – lamentava-se.

Enquanto falava, as cenas das guerras mundiais da era moderna e da antiguidade flutuavam no ar holograficamente. Sobrepostas a elas, o que pareciam ser festas da colheita e os mais caóticos e pirotécnicos bacanais da história, à vista dos quais Saga enrubesceu de constrangimento.

– Bem, chega de conversa. É hora de resgatar os bons tempos.

Os olhos de Dioniso emitiram luz púrpura e, com um rangido, a urna se abriu, revelando a estatueta/taça.

- Antes, – ponderou – tenho uma revelação a fazer, apenas por capricho, uma vez que não te recordarás deste encontro.

Suor gelado escorreu das têmporas de Saga. Precisava sobreviver ao encontro com o deus e assimilar o que quer que Dioniso planejasse. Urgia reportar ao Santuário o máximo de informações possível.

Em oposição a esse pensamento, a personalidade oculta do guerreiro pulsava de excitação, atrapalhando a tentativa de elaborar qualquer estratégia de ação.

- Não foste escolhido por mim a esmo – disparou – Tu e teu irmão são os únicos semideuses da atualidade. Com isso quero dizer que sois meus filhos.

As risadas e música dos arredores silenciaram com a força da notícia. O próprio Dioniso, que se mostrava um discursador incorrigível, permitiu a Saga um momento para digerir a informação.

Com os olhos estatelados e o som do sangue pulsando nos ouvidos, o cavaleiro permaneceu sem respirar pelo que lhe pareceram minutos.

"O que é isto? Eu, filho de um deus?!"

- Isto é loucura! – conseguiu dizer.

- De fato, loucura combina comigo – divertiu-se com a reação.

- Como é possível?

- Da mesma forma de sempre, desde os tempos mitológicos. Enamorei-me de tua mãe mortal. Logicamente, ela apaixonou-se por mim. Relacionamo-nos intimamente, então vós nascestes. Ou por acaso tens algum pai a reivindicar?

De fato, Kanon e Saga eram órfãos de pai. Pelo menos até agora. A informação doeu-lhe no estômago com maior intensidade que a dos golpes do gêmeo.

- Deves pensar que tu e teu irmão são como água e vinho, mas na essência são iguais. Acrescento: o outro ente que habita teu corpo é herança da tua natureza divina.

Saga desistiu, de vez, da resistência. O deus fanfarrão pareceu satisfeito com isso.

Enquanto Saga entregava-se ao torpor, Dioniso estendeu o indicador sobre a parte côncava da armadura. Rastejou até ali uma rama, a qual instantaneamente produziu um cacho de intenso roxo índigo. Sem cerimônia, espremeu-o sobre a taça.

- Beba.

Os olhos sem vida do rapaz voltaram-se ao líquido. Antes de dar o primeiro gole, sua visão inconsciente vislumbrou duas imagens, intercaladas pelas fracas ondulações na bebida. A primeira mostrava o Grande Mestre portando uma adaga dourada perto de um berço; a outra, menos nítida, uma tríade de cavaleiros vestindo armaduras funestas.

Sem qualquer resistência, bebeu do vinho servido pelo próprio Dioniso.

Saint Seiya: Ascensão de SagaWhere stories live. Discover now