Sintonizando Nancy

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Nancy odiava quando o Dr. Bellenstein a chamava pelo sobrenome. Ela não lhe respondeu, apenas torceu a boca e se dirigiu para a janela, assoprando a fumaça para longe, em silêncio, um tanto contrariada. Henrique continuou a falar:

- Ainda sente algo por ele, o doutor - ele deu bastante ênfase na palavra doutor - Ricardo Aragón?

- Talvez, ela disse, olhando para o movimento da rua. O professor tirou o jaleco que vestia e o pendurou numa cadeira; em seguida, se aproximou de Nancy e a abraçou por trás. Ela consentiu e perguntou carinhosamente.

- Por que me chamou aqui, Henrique? Você sabe que eu amo Ricardo.

- Eu queria lhe mostrar algo. Na hora certa, ponderou Henrique. - Mas será que o ama verdadeiramente, Nancy? Por que você está aqui abraçada comigo? Este seu sentimento é real?

Nancy continuou a olhar para a noite lá fora, vaga e soturna. Com dificuldade, confusa em suas percepções, ela respondeu: - Eu quero que seja real, Henrique. Ricardo é muito bom pra mim.

Em seguida, Henrique insistiu: - Por que sentir algo por uma pessoa tão vazia quanto Ricardo, Nancy? Há tanto aqui, nesta sala, entre nós dois. Como nas estrelas lá no alto, olhe!, ele indicou a constelação de Órion. - Ricardo é apenas matéria escura, da qual os cientistas ainda especulam a real existência... Por outro lado, ele disse, reflexivo, há tanta vida, tanta pureza e divindade em todos os cantos do universo infinito. Desde os pequenos átomos, passando por dois amantes cósmicos, como eu e você, até os conjuntos de galáxias mais distantes.

Nancy Gemelli gostava quando ele raciocinava com doçura em seu olhar. - Fale mais, sussurrou, virando de frente para Henrique e entrelaçando as mãos em seu pescoço. Ele começou a puxá-la de volta para o sofá, beijando com alguma ternura o rosto angelical de sua aluna. Ela apagou o que restava do cigarro no cinzeiro e sentou em seu colo.

- Bem - ele continuou, enchendo mais um cálice com bebida, claramente envaidecido quando lhe davam atenção intelectual - Pense, por exemplo, na incrível semelhança entre os sistemas de atração e repulsão formados pelas partículas subatômicas e seus núcleos com a dança dos planetas ao redor do sol.

Ele fazia carinhos nos cabelos cacheados de Nancy, observando os detalhes íntimos de sua pele imaculada. Henrique parecia estar tentando demonstrar algo muito evidente, mas imperceptível aos olhos.

- Ou, quem sabe, na marcha das pequenas organelas citoplasmáticas dentro das células da epiderme e o movimento elíptico das estrelas sugadas pelos buracos negros do interior de cada galáxia... A água que desce pelos ralos e os incontáveis abismos nos quais a luz cai e nunca mais volta. O que há no interior desses buracos?

- Eu gostaria de saber, balbuciou Nancy, fechando os olhos. - Acho que é tudo gravidade, afinal. Somos atraídos por ela, respondeu a jovem graduanda, sentindo uma força irresistível sobre seu corpo, enquanto a mente era tragada para zonas profundas do conhecimento. Henrique parecia empolgado, não apenas em poder abordar livremente temas controversos dentro de sua área, como também em poder sentir novamente o frescor dos braços de Nancy, que apenas se deixava levar pelos toques contundentes de seu mestre.

- Você não acha que cada ínfima partícula subatômica pode ser um novo e gigantesco universo, com trilhões de formas de vida, energia e dimensões compartilhando experiência lá dentro? Quero dizer, lá dentro da partícula ninguém jamais perceberia ser tão pequeno. E nós, neste universo, que pensamos ser gigantesco, não podemos, talvez, estar presos num minúsculo átomo de outro universo colossal que não podemos ver a olho nu? Não seriam os buracos negros algo como portais para outros universos, muito maiores e mais fascinantes que este?

Embora estivesse mais interessada, de fato, no carinho e na cumplicidade, ela abriu os olhos e respondeu, pensativa, tentando agradá-lo. - Acho que você tem razão, Henrique. Nós somos muito pequenos diante de tantos mistérios da vida. A física é uma espécie de filosofia gnóstica, não é mesmo? Uma busca mágica pelo infinito. Mas, por outro lado, ela disse pausadamente, quanto mais investigamos, mais descobrimos que tudo é energia, e esta é a única realidade que ainda temos. Este universo, energético e material ao mesmo tempo e espaço, é indivisível. É nele que estamos e devemos viver, não acha?

Ela tentava buscá-lo de volta para a realidade, para os braços dela. De olhos brilhantes, Henrique respondeu:

- Concordo, Nancy. Você está sensacional, hoje, ele disse, passando as mãos com demasiada voracidade sobre seu vestido decotado. - Entretanto, você nunca parou para refletir que essa energia, ou matéria, dependendo da frequência com que é sintonizada, possa simplesmente sair do ar?

Nancy Gemelli olhou para o relógio na parede e começou a se perturbar com os questionamentos filosóficos. Já não era mais um diálogo pertinente para a situação íntima que os dois estavam vivenciando. Um vago sentimento de culpa, uma sensação de estar no lugar errado na hora errada, iniciou um trajeto indisfarçável em seus circuitos cerebrais.

- Sair do ar? - ela perguntou, afastando-se lentamente.

- Isto. Quero dizer, isto tudo ao nosso redor pode simplesmente não existir. Esta sala pode muito bem ser mais um elemento cenográfico de um imenso holograma universal, respondeu Henrique, virando mais um gole do líquido dionisíaco para a garganta, maravilhado com suas próprias fantasias.

- Muito bem, Dr. Bellenstein, respondeu Nancy, levantando-se com impaciência e dando alguns passo até o toca-discos, gentilmente retirando o cálice das mãos de Henrique e colocando-o sobre a mesinha. - Acho que esta música está nos levando para outro universo.

Ela retirou a agulha do vinil. - Não tem algo mais apropriado para ouvirmos, Henrique? Por favor?, solicitou, com voz repreensiva. Em seguida, ligou o aparelho de rádio, tentando sintonizar uma música mais suave.

- Cada lugar e momento, cada frequência de luz, são como diferentes estações de rádio, ou faixas de discos em diferentes sintonias. Se você tira a agulha, a sinfonia holográfica pára de tocar sua melodia, disse Henrique. As feições de seu rosto pareciam estar entrando em outra frequência.

- Henrique, eu estou falando sério, ela apelou impaciente, deixando o rádio ligado em estação nenhuma, com apenas som de estática fluindo dos alto-falantes.

- Eu também, Nancy. Bastante sério.

O Dr. Bellenstein cruzou as pernas e pegou a garrafa de vinho de cima da mesinha. - Assim como você tirou a agulha desta faixa, alguém em algum ponto do universo, ou de outro universo, quem sabe, poderia tirar a agulha de cima da faixa que toca a sua música. Ou, melhor dizendo, você poderia deixar de existir se alguém lá fora estragasse a sua agulha. Esta sala inteira poderia sumir se nosso disco fosse quebrado. Neste momento, nós podemos muito bem estar vivendo na mente de alguém, e se esse alguém morresse, então nós também daríamos nosso último adeus.

Ele disse isto e ficou pensativo, com os olhos perdidos.

- Henrique, acho melhor eu ir para casa. Ela suspirou e sentou em outra poltrona, calçando novamente seus sapatos. - Eu estava tão cansada, tive uma semana de muitas provas, briguei com Ricardo; só queria relaxar um pouco. Mas acho que você, infelizmente, não está sintonizado num bom momento, ela falou de forma irônica. - Além disto, vinho não lhe cai bem, doutor.

- Aprecio sua sinceridade, assim como aprecio um bom vinho. Aliás, dizem que no vinho está a verdade. Mas este aqui, ele ponderou vagarosamente, agitando a garrafa - na verdade, é falso. Assim como você, como tudo ao meu redor.

Henrique parecia estar sutilmente transfigurando sua personalidade, abdicando de toda sua potência intelectual para apenas beber na fonte dos ébrios inconvenientes. - Que horas são, por sinal, meu anjo?, ele perguntou, levando a mão à testa, como se estivesse com enxaqueca. A aluna respondeu: - É meia-noite; terminou de calçar seus sapatos e levantou, procurando sua bolsa para sair.

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O Cigarro tinha gosto de BeijoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora