Sintonizando Nancy

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O relógio na parede badalava meia-noite. Henrique Bellenstein ajoelhou no chão da sala e começou a revirar seus discos de vinil, procurando uma música especial para aquele momento. Sua franja oleosa, repartida de um dos lados da cabeça, caía sobre os olhos claros enquanto ele tentava ajeitá-la atrás da orelha. Inevitavelmente, o cabelo voltava a receber a influência negativa da gravidade, e o Dr. Bellenstein finalmente se conformava com isto.

- O que está procurando aí, Henrique?, perguntou a jovem negra e curvilínea sentada no sofá.

Ela estava tirando os sapatos de salto alto e colocando as pernas delicadas sobre a mesinha de centro, abrindo e fechando os dedos do pé, enquanto observava atentamente para o jaleco do catedrático de física.

- Uma musiquinha para alegrar, respondeu ele, forçando um sorriso e olhando para Nancy com o canto da visão.

Suas pesquisas científicas na Universidade de Winchester haviam despertado o interesse de investidores, o que acabou lhe rendendo um atrativo financiamento.

- Por favor, Nancy, poderia nos servir algo para beber?, ele solicitou, apontando para o pequeno bar ao lado do sofá.

- O que sugere, Dr. Bellenstein?, indagou a aluna, inclinando-se e passando as mãos sobre as garrafas.

- Para mim, vinho tinto. Seco. E tente não me chamar de doutor, Nancy. Este tipo específico de vaidade acadêmica não me atrai nem um pouco.

Ele parou de falar por alguns segundos, segurando um vinil do compositor grego Vangelis nas mãos; levantou e caminhou até o aparelho de toca-discos.

- Encontrei! Aqui está... Vejamos...

Atraído por uma força irresistível, Henrique voltou ao assunto.

- Enfim, ainda estou concluindo meu doutorado, falta alguma burocracia a ser vencida antes da titulação.

Ele colocou o grande disco escuro sobre o prato giratório do aparelho e posicionou a agulha na faixa correta. Um leve chiado soou agudamente nas caixas de som antes da música Spiral começar a tocar.

- Tudo bem, então, Henrique. Não quis provocar nenhum tipo de suscetibilidade.

Ela respondeu de pé, estendendo o cálice para o iminente doutor Bellenstein, que o segurou com uma das mãos e beijou a testa de Nancy.

- Não vai tomar nada?, perguntou curioso. Sua aluna da graduação colocou a mão direita sobre o peito e respondeu delicadamente:

- Hoje não. Não estou muito bem, sinto um aperto desde cedo, uma leve falta de ar; sei lá.

Henrique estava um pouco distante e refletiu:

- Você sabe, Nancy, que a palavra suscetibilidade pode se referir não apenas a um sentido psicológico, mas também a um termo do eletromagnetismo?

Henrique a abraçava no meio da sala enquanto ela permanecia muda, olhando para o chão, possivelmente constrangida pela eloquência vaidosa de seu professor universitário.

- Ela significa, também, o quociente entre o módulo da magnetização de um material sujeito a um campo elétrico e o módulo da indução magnética provocada pelo mesmo campo no vácuo.

- É, eu havia estudado isto com o Dr. Aragón no semestre passado, respondeu Nancy maliciosamente, acendendo um cigarro mentolado. Ela sabia que isto deveria lhe provocar um certo sentimento de ciúme e rivalidade. Afinal, sua humildade acadêmica e pessoal não era, assim, tão franciscana.

- Ah!, ele exclamou, estalando os lábios com vinho. - Percebo que está tentando me provocar algum tipo de sensação, não é mesmo, Srta. Gemelli?

O Cigarro tinha gosto de BeijoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora