Um Certo Amigo

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Certo dia recebi um telefonema. Era Roberto, um colega médico que terminou o curso no semestre seguinte ao meu. Ele sabia que eu e Miguel havíamos vindo trabalhar no Ceará e ele pensava fazer o mesmo. Havia uma vaga numa comunidade chamada "Triângulo", um Posto de saúde recém-inaugurado, com uma estrutura e acesso bem melhor do que eu trabalhava. Assim que tudo foi ajustado ele chegou. Os primeiros dias na cidade eu o poupei de ficar no Hotel Municipal e ficou hospedado em minha residência.

Na primeira noite que ele passou na cidade, havia um aglomerado de pessoas na calçada em frente de casa, uma das filhas de seu João, o vizinho com algumas amigas, faziam um barulho bem mais alto do que normalmente. Nas cidades do interior é muito comum, todo fim de tarde e início da noite, reuniões na frente de casa. Ainda não estava habituado.

No dia seguinte, Roberto iria conhecer o posto de saúde que trabalharia com a enfermeira Cristina. Íamos sempre bem cedo para a sede secretaria de saúde e de lá os motoristas nos conduziam, cada um ao seu respectivo local de trabalho. Roberto seguiu com Cristina e o motorista, direto para o local de atendimento de hoje, que seria na sede do distrito. Após a triagem da enfermagem, as fichas de atendimento estavam prontas.

— Está tudo em sua mesa doutor Roberto. Podemos começar? —Disse Cristina observando se os demais itens estavam devidamente checados.

— Obrigado Cristina, vamos sim.

E assim foram entrando primeiro as mães e seus filhos. Roberto percebeu que algumas crianças não estavam bem cuidadas em relação a higiene. Algumas com as pernas bem empoeiradas, roupas encardidas e unhas das mãos grandes e sujas. É bem verdade que as pessoas daquela região eram bem humildes e não possuíam um poder aquisitivo bom, mas a higiene não depende disso, e sim mais de um processo de educação e reconhecer ela como uma prioridade. Os bons hábitos podem ser inseridos na comunidade aos poucos, e a medida que as pessoas fossem entendendo seus benefícios a transformação se dá de forma lenta mais progressiva. Mas nosso amigo Roberto não era muito paciente.

Após as primeiras consultas, se dirigiu até a sala de enfermagem, onde Cristina estava consolidando alguns mapas de atendimentos.

— Cristina. —Disse ele ao entrar na Sala.

— Diga doutor Roberto.

— Percebo que as crianças que estou atendendo estão com roupas sujas, encardidas, pele empoeirada, muita sujeira nas unhas.

— Esta comunidade é bem pobre —após uma pequena pausa seguiu argumentando. — Algumas mães andam alguns quilômetros até chegar aqui, e ainda tem que crianças pequenas são muito danadas, pulam brincam, até rolam no chão.

— Hum... então vamos fazer assim. Então pelo menos as mães tragam com as unhas aparadas e limpas. Nunca iremos diminuir situações como verminose e diarreias senão começarmos por algum lugar.

— Vou avisar... pode deixar.

No dia seguinte, Roberto estranhou ter entrado na sala e demorado a entrar o primeiro paciente. A agente de saúde havia entendido que ele só atenderia os pacientes caso estivessem com as mãos limpas e unhas aparadas. Roberto foi até a porta do consultório e estavam as mães enfileiradas e o agente aparando todas as unhas.

— Espera um pouco doutor, que este aqui está quase pronto!

Roberto até pensou em explicar melhor a situação, mas a criançada estava levando tão bem tudo aquilo que ele deixou como estava.

O segundo dia de trabalho terminou. Foram, no total entre atendimentos médicos, consultas de enfermagem e procedimentos, uns cinquenta atendimentos no total. Todos exaustos já prontos para voltar para a sede do município, quando o carro destinado para o transporte não estava lá os aguardando.

— Cristina onde está nosso transporte? Já estamos esperando há mais de meia hora!

— Não sei doutor. Mas logo cedo, após nos deixar aqui. O motorista disse que iria deixar um vereador depois da Madresilva.

— E o que é Madresilva?

— É uma fábrica de móveis que fica mais a frente na estrada.

— Me diga uma coisa Cristina... este carro não era destinado para nossa unidade de saúde?

— É sim!

— Pois para ele sair daqui, além de nosso conhecimento deveria ter uma autorização sua ou minha. Isso está errado! Se tivéssemos algo urgente aqui como poderíamos remover alguém com o carro andando por aí?

— Isso é verdade doutor, mas o senhor sabe como são as coisas de interior.

— Na verdade não sei! Sei que está errado. — Disse saindo em direção a estrada a pé.

— Onde o senhor está indo?

— Bom estou indo para casa, vou a pé mesmo!

— Mas são 7 km.

— Não tem problema! É bom que aumenta a raiva.

E assim foi. O sol cearense ainda é superquente, mesmo as 17h. Ele foi durante todo o trajeto a pé com sua valise em uma das mãos até chegar em casa. Molhado de suor, bochechas rosadas, não sabia se era de raiva ou de calor.

Realmente, quando as primeiras unidades de saúde foram abertas através, na época chamada, Programa Saúde da Família, o Ministério de Saúde disponibilizava recursos para a aquisição de equipamentos, reforma estrutural e aquisição de um veículo para transporte da equipe de saúde. O uso irregular nos interiores era frequente e difícil de mudar pelos vícios e posturas de gestores do interior. Por isso não era difícil imaginar o motivo que em menos de 15 dias Roberto havia desistido de seguir trabalhando e pediu demissão.


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Memórias de um Médico no SertãoWhere stories live. Discover now