CARTA

11 0 0
                                    


CARTA

Prometo que esta será a última carta,

porém primeira.

E não sei se te chamo amor, que rima a dor,

ou de um apelido qualquer que não me lembro.

Prefiro assim.

Vou deixar que o tempo corra e escorra

pelas minhas mãos o perfume de teu sorriso e voz.

Só vou lembrar teus olhos grandes, negros,

teus dentes grandes, brancos –

e o contraste que marca teus atos.

Vou deixar de ver tua nuca sob o rabo de cavalo,

os lindos pelos em suas costas e ventre,

as mãos de pianista,

o andar elegante, largado.

Prometo que não haverá mais contatos,

e que todas as coisas do mundo não existirão

apenas porque você existe.

Garanto que não mais repartirei o ar

somente contigo, e que as

atitudes passarão a ser mais sérias.

Não devo ganhar com isso,

mas espero não perder.

Não se trata de fazer ou não fazer,

mas quero te ver como alguém

que nada me deve, de quem nada espero,

a não ser que as lembranças se tornem doces.

De tudo aprendi que há sentimentos novos,

bons ou ruins ainda em decisão.

Aprendi a ser palhaço - rir com a alma

e ter o coração mergulhado no vinho da angústia.

Descobri a utilidade de tolos atos,

que não nos guiamos na cegueira passional

e que não há idade em que mergulha o corpo

quando a mente mergulha em turbilhão.

Vou lembrar das noites de primavera –

mesmo quando a estação não importava –

de todos os medos e tensões,

de tudo que foi graça e alegria.

Prometo não esquecer de esquecer e lembrar,

lembrar de lembrar e esquecer,

seguir, tentar.

Não sei se há algo especial para dizer,

mas sei que entende, sempre entendeu,

tudo o que foi dito e o que ficou entre os lábios,

tudo de tudo – do que foi claro e escuro.

Não se importe, não é isso que quero,

pois não se mescla passado e tempo,

não se molda futuro a gosto,

e o presente é um vai e vem de doidos.

Nunca fui de escrever cartas, bilhetes,

meus poemas de infância eram papéis comuns,

mas cravei no espírito as coisas que me tocaram e tocam.

Vou me lembrar de tuas roupas, jeans,

de teus gestos, cleans,

então do corpo que pude ver,

e dos atos em que pude crer.

Sei que haverá veladas vontades

de se rasgar a manhã em conversas,

e que a cada música que a cada ano me marcou

vou beber meu sangue em chopp,

mas sem problemas.

Já te disse que não haverá outra carta -

se já não sei o que disse,

como saber o que mais dizer?

Então, um adeus de Deus pra mim

e para ti,

suficiente como os pássaros

para a alma da floresta.


Palavras e poemasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora