22. Um novo deus

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Outra vez, ao redor da mesa, os quatro. Passei a última meia hora explicando tudo o que havia acontecido e o que descobri. A relação entre o Doutor e Otto, a descoberta dos bebês, o envolvimento da Igreja de Fabian, o tráfico das alunas usadas como cobaias. Agnes, vestida com um conjunto calça-camisa azuis e cabelos presos, virou o rosto e esticou o corpo ao menos quatro vezes. Colocava as mãos sobre a mesa, depois sobre os joelhos e suspirava. Vagner prestava uma atenção incomum a ela, uma orelha abaixada, a outra erguida bem na minha direção, sempre em seus ternos de tons claros. Janice, de camisa bege e calça preta, parecia desligada daquele ambiente; com o queixo elevado, como se pensasse com mais profundidade do que os outros membros do grupo. No centro da mesa, o pequeno banquete a que já começava a me acostumar. Nenhum de nós sequer havia tocado na comida — café, suco, água, pães de sal, doces, bolinhos de chuva e frutas.

— Então, é isso? — Vagner disse, entrelaçando os dedos.

Ergui as mãos, como se me desculpasse pela conclusão.

— Pelo que consegui descobrir, sim.

— É uma pena que o Doutor tenha se envolvido nisso.

— Não é culpa do Otto, Vagner.

O urso levantou a orelha que estava abaixada.

— Agnes, eu não disse que era — ele disse.

— Vocês perceberam que isso não nos leva ao assassino do Otto, não é? — Agnes disse, agora de braços cruzados. — Como a gente vai provar que a igreja está envolvida?

Olhei para Janice. Ela entendeu que sua intervenção seria mais produtiva do que a minha e veio em meu socorro expondo o mesmo raciocínio que eu desenvolveria ali:

— Agora, vamos para outra fase na nossa investigação. Vamos concentrar nossos esforços em conseguir evidências.

— Boa sorte para nós, então — Agnes a interrompeu e virou o rosto para Vagner. — Até hoje, ninguém conseguiu levar um membro sequer das nossas famílias à justiça ou à polícia.

Vagner sorriu, com um tanto de ironia e outro de orgulho. Eu daria um soco naquele focinho, se pudesse. Contentei-me em encará-lo. Seu sorriso durou apenas mais um instante. Tenho quase certeza de que Agnes não percebeu.

— Já temos por onde começar sim — o urso disse e apoiou os cotovelos na mesa, as mãos entrelaçadas. — Se a gente descobrir por que o sumo-sacerdote quer criar este bebê...

Antes que ele conseguisse proferir a palavra seguinte, Agnes afastou a sua cadeira e se levantou. O vestido preto e curto vibrou em ondas raivosas, acompanhando o movimento exagerado de suas pernas na direção de uma das portas. Ouvimos seus passos até desaparecerem no corredor. Janice esboçou segui-la, mas foi contida pela mão de Vagner. O gesto foi rápido e delicado. Ela encarou os pequenos olhos negros dele. O urso tombou a cabeça, indicando a cadeira, e Janice se sentou.

— Nós três. — ele disse, libertando o braço de minha amiga e retornando sua mão à companhia da outra, sobre a mesa. — Nenhum de nós três se importa de verdade com religião. Meu pai era um devoto, eu sou no máximo um hipócrita que finge muito mal seguir alguma coisa. Agnes é diferente. Ela sempre acreditou não apenas nos deuses, mas no sumo-sacerdote. Ele foi o guia e mentor espiritual da família Villanova. Se você tivesse me falado disso antes, detetive, eu teria aconselhado a não contar tudo para a nossa amiga. Pelo menos não ainda.

Vagner falou aquilo num tom quase professoral, lento, calculado, como eu jamais havia visto o herdeiro dos Lopes falar, sobre assunto algum. Muito menos sobre Agnes. Assim que ele se calou, voltamos a ouvir os passos, desta vez em reverso; começando quase inaudíveis até a batucada que anunciou o retorno de Agnes à sala. Abraçada a um livro de capa dura, a senhorita Villanova parou na nossa frente. Olhávamos para ela como uma plateia a espera de uma palestra. A ruiva respirou fundo antes de falar:

Memória de GorilaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora