Prólogo

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A grande São Paulo estava escura e fria, os imensos prédios predavam a paisagem natural que um dia habitou aquele mesmo lugar, hoje cinza. A chuva regava o asfalto pesado na esperança de algo verde brotar em meio a um deserto de amarguras. O vento perambulava os becos na madrugada. Se há uma coisa que pode ser tomada como verdade absoluta é aquela frase clichê: "A cidade nunca dorme". E garanto que a mesma nunca esteve tão acordada como aquela notável noite.

Todos procuram por um miligrama de singularidade, o que torna tudo uma grande piada, já que todos procuram singularidade em coisas singulares. Sigam o raciocínio: se toda singularidade está em um único e específico ponto onde todos procuram o que a tornaria tão singular? Sendo assim, todos são banais como a banalidade. Singulares são os que olham para o normal e o enxerga diferente. Sinto na obrigação de esclarecer meu dever nessa história, veja, sou apenas o mero narrador. Alguém tentando captar os insignificantes momentos singulares do espaço-tempo dessa história para contá-la.

E naquela noite algo bem específico acontecia enquanto todos dormiam, menos a cidade. Repare que a cidade é uma peça bem importante nesse cenário uma vez que ela é uma personagem. No décimo quinto andar de um prédio residencial qualquer, em um apartamento qualquer, dentro de um quarto sem luz qualquer, em cima de uma cama confortável qualquer estava Pandora, uma menina singular. Lembre-se quando digo que ser singular nem sempre é uma coisa boa. Se você pudesse ver a garota dormindo com certeza se sentiria incomodado tamanho a agitação que percorria o corpo feminino.

Em sua testa começava a formar gotas de suor, Pandora se debatia, virando de um lado para o outro e mesmo se mexendo tanto continuava dormindo. Não era algo muito fora do comum, desde de pequena apresentará certa agitação ao dormir, em seus piores momentos chegando a gritar e ter febre. Seus pais não entendiam o motivo, durante o dia Pandora costumava ser a criança quieta e comportada, uma vez ou outra fazia birra, mas em sua maioria era bem calma. Tentaram de tudo, mudaram alimentação da garota, a proibiram de assistir qualquer coisa depois das 16h, de nada adiantou. Pobres coitados, mal sabiam eles que esses sonhos só acontecem com quem possui a alma marcada pelo destino como a amada filha deles.

Todavia, não era o estado exterior de Pandora que chamava a atenção, mas sim o que se passava em sua imaginação naquele momento. Aquele sonho começou normal, estava Pandora andando pela rua, o mesmo caminho que fazia para ir para sua antiga escola. Tudo estava de acordo com a realidade certa, se é que posso ter a ousadia de dizer isso, porém um sentimento começou a tomar posse do interior da menina. Sentia algo estranho, uma certa angústia. Esse era um dos sonhos conhecidos por Pandora, ao total eram em três, sonhos que revezavam noite após noite sempre mostrando as mesmas coisas. E então aquele cenário que antes possuía um céu aberto e bonito se tornou nublado e fechado. No horizonte longe Pandora conseguia ver um raio cruzar o céu, instintivamente tampou os ouvidos esperando pelo barulho do trovão. Piscou e nos milésimos de segundos que seus olhos se fecharam tudo mudou.

A garota olhou ao redor e se viu em cima de um prédio. As roupas encharcadas não pareciam com as que estava usando momentos atrás, nunca as tinha visto antes. Eram em sua maioria pretas, a calça estava grudada ao corpo, o tipo de roupa ideal para fazer exercícios físicos. A camiseta era leve, estava coberta por um casaco preto de um tecido não tão maleável quanto ao resto. Parecia lembrar vagamente algum tipo de couro. Os pés estavam cobertos por coturnos escuros. O cabelo grudava na face molhada. Curiosa, Pandora andou até uma das beiradas e olhou para baixo. Era um prédio extremamente alto, mais de vinte andares calculou. E a partir desse momento Pandora não teve mais controle sobre seu corpo, assistia, assim como nós, em uma perspectiva de uma terceira pessoa. Via seu corpo se afastar da beirada, olhar algumas vezes para as próprias mão tremulas e soltar o ar pesadamente. E apesar de tudo a figura do corpo parecia verdadeiramente leve, talvez até livre.

As panturrilhas contraíram com o impulso das pernas, começou a se mexer tomando cada vez mais velocidade. Seus olhos estavam grudados em um objetivo, e um objetivo apenas: pular. Pandora que não controlava o corpo se sentiu desesperada. Não, ela não queria pular, por que pularia? Ninguém poderia responder tal pergunta, se ao menos Pandora que se movimentava pudesse nos contar. Sem hesitar mergulhou no abismo. A chuva ainda caía pesada, mais forte a cada segundo. Piscou novamente, então Pandora número um e número dois, se assim preferir chamar, voltaram a ser uma. Pandora estava novamente no controle de seu corpo em queda livre. O vento corria veloz por seu rosto atravessando seu corpo. O chão se aproximava cada vez mais e mais.

O medo disputava lugar com a paz, como se a menina soubesse que tudo daria certo e ao mesmo tempo tivesse medo de não dar. Piscou.

O tronco de seu corpo levantou em reflexo com brutalidade. O peito subia e descia com rapidez, com os olhos ainda arregalados se deu conta da onde estava. Em seu quarto já acordada Pandora recuperava o fôlego, poucos segundo da garota acordar seus pais chegaram em seu quarto. Preocupados, examinaram de maneira atrapalhada a filha. Ouviram gritos vindo do quarto da garota e se assustaram. Em menos de minutos Pandora estava tomando calmantes com um termômetro enfiado debaixo de seus braços e uma bolsa de gelos em sua testa. Depois de um tempo insistindo para que seus pais voltassem a dormir obteve sucesso. Ela já estava calma e se sentia segura novamente.

Sozinha em seu quarto Pandora levantou e foi até o banheiro. Acendeu a luz e ficou um bom tempo apoiando os dois braços na pia enquanto se encarava pelo espelho, com o barulho de um trovão da chuva que continuava a cair do lado de fora saiu da hipnose e ligou a torneira. Deixou com que a pia enchesse, com uma mão se apoiou com a outra segurou os cabelos que ia a altura do ombro em um rabo de cavalo. Mergulhou o rosto, permaneceu assim até que lhe esgotasse o ar dos pulmões. Voltou a superfície respirando pesado devido à falta de oxigênio no minuto anterior. Ainda se olhando no espelho notou alguns hematomas no braço esquerdo começando a aparecer. Era comum acordar machucada de sonhos assim.

-Qual é Pandora? Já estamos bem grandinhas para ter chiliques por causa de pesadelos. - Falou para si mesma descontente.

Observou o espelho mais uma vez, balançou a cabeça negativamente com um sorriso um tanto quanto sarcástico. Notou que suas mãos tinham voltado a tremer, cambaleou meio moribunda para a cama. Era uma tontura passageira, não se deu o trabalho de chamar os pais. Deitou tentando se sentir o mais confortável possível e ficou olhando pela janela a tormenta que devorava a cidade de São Paulo naquela madrugada. Sonhos desse tipo deixavam Pandora extremamente cansada, antes de cair no sono pela segunda vez pensou que era uma bela singularidade aquela chuva normal. Era uma bela singularidade aquela noite, ninguém poderia discordar.  

Despertar - Batalhas InvisíveisOnde histórias criam vida. Descubra agora