Part I- A fuga

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Grace abriu a tampa do baú e sentiu o nariz se irritar com a poeira.

O quarto estava impecável, exceto pelos objetos derrubados na briga anterior, que jaziam quebrados ao chão.

Ali estava! Ela tocou o cetim vermelho sangue e esboçou um leve sorriso. Fazia anos que ela não usava tal peça.

Exatos sete anos.

"Eu não quero me casar com ele", ela lembrava de ter dito.

"Temos que agradecer, filha", havia respondido a mãe "Havia uma recompensa por aquele lobo, afinal. Ele vai receber moedas e você terá um bom lar e comida à mesa todas as noites".

Grace tinha apenas 16 anos naquela época, mas já entendia muito bem a dor da fome. Ela e a mãe passaram tempos difíceis após a morte de seu pai, durante um deslizamento que destruíra a residência da família.

Elas tiveram que cruzar o reino para poderem se abrigar junto a avó da menina de apenas 8 anos.

Os longos meses de viagem se entendiam ainda mais com a fome e o frio, até que enfim foram acolhidas pelo abraço carinhoso da gentil senhora, a quem todos ali adoravam.

Moraram com a avó de Grace até a mesma completar 14 anos, e foi quando sua mãe pôde comprar uma casa.

A casa era bonita e aconchegante, e a sua mãe só conseguira comprar porque rolava boatos de um lobo na floresta quilômetros à frente.

Depois de tanto frio e tanta fome, o que era um lobo inventado para manter as crianças longe da floresta?

Era muito. Afinal, aquilo custara a vida da avó.

Grace se vestiu de branco e subiu ao altar.

O caçador tinha 23 anos a mais que ela, uma barba asquerosa e dentes podres.

A jovem menina precisou segurar o vômito para dizer "Sim".

E após alguns dias de casamento, Grace percebeu que talvez o lobo não fosse o único vilão daquela história.

O marido a violara na noite de núpcias, a proibia de sair para outro lugar além da casa da mãe, a batia e a ofendia.

Ela pensou que não suportaria, mas notou ser mais forte do que pensara.

Cogitou fugir várias vezes, mas nunca havia coragem suficiente para deixar a mãe para trás.

Mas naquela manhã a vizinhança acordou com a triste notícia.

A mãe de Grace havia morrido enquanto dormia.

-Abra essa porta- O caçador batia na forte porta de mogno que separava o quarto do casal do resto da casa.

Grace agarrou o tecido e o vestiu, se enchendo de nostalgia.

Agora que a mãe estava a descansar, nada poderia a prender àquele nojento.

-Grace! Estou ordenando que abra a porta- Berrou -Para cada minuto que me fizer esperar, será um dente que lhe vou arrancar.

A jovem de cabelos escuros e pele pálida tocou a bochecha, se lembrando da dor causada por um murro que lhe arrancara dois dentes, dois anos antes.

"Normal, querida", lhe dizia a mãe "Ele tem apenas um temperamento forte, um dia irá se acalmar. Você deve respeitá-lo, pois ele é seu marido".

Ela amava a mãe, mas com certeza ela estava errada. Se sua vó ainda fosse viva, Grace podia jurar que ela diria "Chute o saco dele e coloque veneno em sua comida. O que está morto não pode machucar".

As pessoas poderiam achar aquilo normal. Podiam até fingir não ver.

As mulheres poderiam aguentar o mesmo de seus maridos. Podiam colocar a culpa na bebida.

Mas não ela.

Grace sabia que aquilo não era o certo.

Ela se olhou no espelho e suspirou. A peça havia sido feita para ela, e surpreendentemente, ainda servia.

Seu lábio estava cortado, o olho roxo e o nariz sujo de sangue.

Mas aquela era a última vez que ele lhe batia.

Agarrou sua cesta com mantimentos, abriu a janela e a pulou.

-Graaaaceeeee!- O ouviu gritar.

Correndo pela floresta, pensava. Ela não usava aquela capa desde o dia do casamento.

"Guarde esse trapo. Seu nome é Grace e você deve esquecer qualquer apelido idiota que um dia lhe deram", dissera seu marido.

Fazia sete anos que ela não usava a capa vermelha.

Fazia sete anos que ninguém a chamava de Chapeuzinho Vermelho.

Vermelho SangueWhere stories live. Discover now