Capítulo IV - Sequelas

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- Então, em um ato de solidariedade, você decidiu cuidar daquele pobre que perdera tudo, disposta a fazer o impossível para mantê-lo vivo. - Sua bondade me irritava por algum motivo.

- Mentiria se negasse. Era mais que a minha função.

- Por que simplesmente não me esqueceu, como todos? - Não me importava se minhas palavras refletiam o meu amargor.

- Seu fantasma ainda rodeia aqueles que ainda amam você - respondeu, deixando claro o fato de eu ser dado como morto.

A história já me foi contada meses atrás. Assistentes sociais que não conseguem encontrar familiares ou conhecidos, um caso esquecido de forma tão rápida que sequer deixa resquícios, amigos acreditando numa mentira sem questionar, uma família deletada da lixeira da sociedade e um Zé Ninguém, tão morto para o mundo quanto para si mesmo.

- Você é um guerreiro. - Suas palavras nem sequer cumpriam a missão de me reconfortar.

- A luta, a cada dia, mata uma parte de mim.

- Gunther, se você se visse naquele leito...

- Eu mesmo colocaria um ponto final, ali mesmo - repliquei. - Ao menos me privaria disso hoje. - Apontei para meu rosto, mas o epicentro do sofrimento apertava em meu peito.

- A noradrenalina era sua maior companhia naqueles seis primeiros meses - continuou, como se eu nada houvesse dito. - Quase sem sedação... Não davam nada por você. Depois o FiO2 começou a diminuir e eu percebi que ali você lutava com bravura.

"Um ano se passara, você me surpreendia a cada dia. Aquele "paciente desconhecido" contava história a cada traço de recuperação. Cogitamos tirar o tubo, então a infecção veio, piorando significativamente o seu quadro, logo eu te vi parando por sepse. Era como se tivesse desistindo, mas você guerreou corajosamente e, com a ajuda lenta dos antibióticos, conseguiu vencer.".

- O caminho que trilhei desapareceu. Já não sinto mais o gosto da realidade em que vivia, agora a amargura gerou monstros dentro de mim que afastaram todas as boas memórias que tinha. Eu não sou tão forte quanto imagina - desabafei.

- Você está cego. - Literalmente. - Por enquanto. - Figuradamente.

Móveis eram arrastados do outro lado daquele cômodo, dando sinal que as outras pessoas daquele apartamento estavam acordando. Lea ajustou o aquecedor portátil e apanhou a sua xícara ainda cheia de um café já frio.

- Você pode se sentar à mesa conosco para o café da manhã - falou, dando uma última conferida no local, antes de se retirar do quarto.

Avaliei o seu convite por alguns minutos. A propriedade com que falara "conosco" cobriu a realidade de sua família com um fino véu de ilusão. Na verdade, a silhueta do casal com uma filha não refletia a tristeza por trás das sombras.

Inspirei profundamente aquele ar carregado, um aroma de móveis que há muito não viam a luz do sol, enquanto ponderava os pós e contras de sair daquele cômodo.

Encontrava-me em um apartamento isolado na rua N Clarck, perto do Museu de História de Chicago, não tão distante de onde eu morava. Aquele quarto estava sendo meu abrigo por meses, desde que Lea me retirou do hospital, com o provável intuito de tornar-se meu patrono.

- Porcaria de abulia. - A falta de vontade forçava uma amizade comigo. A rotina infeliz já se tornara minha companheira.

A vertigem abraçou meu corpo ao me levantar da cama e o chão frio despertou meu interior esmaecido a cada passo. Repousei meus cotovelos no peitoril empoeirado da janela do quarto para ter certeza de que a chuva não parara. Lá embaixo, o relógio digital do ponto de ônibus indicava "21 de junho", o dia mais longo do ano. As mesmas pessoas esperavam o transporte, pontuais, como sempre. Nunca vi seus rostos, todos os dias escondidos sob os guarda-chuvas, talvez propositalmente, o fato era que todos estavam ficando cada vez mais reprimidos, cada vez mais sem voz, cada vez mais sem face.

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⏰ Última atualização: Jan 09, 2018 ⏰

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