Capítulo IV - Sequelas

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Minha vida é uma história sendo escrita por um sádico desalmado. A pena da caneta na mão do escritor pertencera à asa do anjo que recebeu meu mais puro amor por cinco limitados anos, e no tinteiro ferve o sangue da mulher que me aceitou e eu a aceitei... Até que a morte nos separou.

O barulho da chuva arranhando a janela daquele minúsculo quarto isolado, no apartamento da doutora Lea, tornava-se minha única companhia, todas as noites, quando o desespero vinha me visitar, puxando-me para um abismo sufocante. O suor escorria em meu corpo como as gotas da tempestade, desenhando veias geladas nos vidros sujos daquele cômodo. Minhas mãos seguravam firme o lençol fino, mas não impediam meu corpo de vacilar, afundando em agonia. O teto se aproximava de meu corpo deitado, ameaçando me engolir, os pulmões tentavam romper minhas costelas a os aprisionar. Estava ficando, a cada noite, mais intenso. Uma sessão exclusiva de tortura que se estendia por minutos, horas, então eu já perdera a noção de tempo.

Sentira na pele a experiência de fechar os olhos apenas para ter a visão mais clara do horror. Eu era inútil. A chuva ainda insistia em me acompanhar, tentando invadir aquele quarto, talvez sendo minha única ajuda no momento.

Quando o corpo não aguenta, transborda. Nossos olhos viram cascatas; nossa boca, um poço; nossa pele, um mar e nosso coração, manancial.

As percepções opressivas imprensavam-me contra o colchão gelado, esmagando meu peito e ali eu via a noite andar a passos curtos, trazendo uma luz abafada pelas nuvens fartas, um sol que tinha vergonha de mim.

- Passará... - repetia para mim mesmo, mas meus ouvidos privavam-se de ouvir minha voz.

Flores não nascem em campos de batalha. Depois do pânico, uma fusão apavorante de exaustão e humilhação me dava ""bom" dia", e, naquela caixa, meu corpo mofava até Lea chegar em mais uma de suas inspeções diárias.

Permanecia encostada no batente da porta, abraçada por seu roupão de dormir desbotado, com uma xícara de café esquentando suas mãos. Me ofereceria um pouco daquele líquido, se contente estivesse, como em raros dias. E, em uma longa troca de olhar, buscávamos um no outro o que não tínhamos: esperança.

- Você grita em silêncio. - Depois de um tempo, resolveu entrar no quarto.

- Vejo que a dor não pode me calar - falei, recostando-me com dificuldade na cama.

Lea ajustou as cortinas na janela, colocando a xícara de café sobre a cômoda velha, checando a cidade movendo-se preguiçosamente do lado de fora. A chuva continuava incessante, como nas últimas semanas.

- Eu não posso comprar seu sofrimento, Gunther. - Virou-se para mim, que já me encontrava sentado na cama. - Mas não sofra mudo. - Com delicadeza, retirou o tecido que escondia meu olho esquerdo, avaliando o seu estado. - Me diga como se sente.

- As únicas lágrimas que ainda conseguem sair por ele, são de sangue.

O processo de higienização do buraco no lugar do meu olho não demorava, mas a sensação de estar sendo um fardo para Lea pesava em meus ombros, calando-me enquanto suas mãos prestativas cuidavam de mim como um inválido.

Após o procedimento, ela olhava para mim, como se contemplasse com pena a obra de arte trágica que o destino me transformara.

- Diga-me, por que você fez isso? - perguntei.

Lea permaneceu em silêncio por um tempo, como se visualizasse minha imagem, entubado em padecimento.

- Quando eu vi seu corpo cruzando aquele corredor, possíveis motivos invadiram minha mente - respondeu. Seus olhos fixando um jarro vazio. A flor que ali estivera, há muito morrera. - Mas após Harry trazer aquela notícia, eu me senti devastada.

RevivalWhere stories live. Discover now