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A janela cedeu e ele abriu-a enquanto a gritaria na sala se tornava cada vez mais irritante. Da janela ele viu um vulto passando no corredor, um homem que fez cessar todo o burburinho na mesa e começou a falar calma e pausadamente, num solilóquio dirigido aos outros presentes — é uma pena que não dê pra eu ouvir nada do que ele tá falando, porque fiquei até curioso, agora, o que fez aquele bando de hienas histéricas se calar? Abriu a janela bem devagar, com cuidado para não fazer barulho, agora a sala estava em silêncio ouvindo o anfitrião. A janela abriu por completo e fez um baque ao bater contra a parede — o homem calou a boca e provavelmente havia olhado para dentro do quarto pela porta aberta. O ladrão se escondeu do lado de fora e esperou todos voltarem a falar para entrar. Entrou com cuidado, cada passo era calculado com a delicadeza de quem pisa em ovos e concretizado com precisão cirúrgica, e sentiu os objetos que estavam à sua frente: uma escrivaninha, a cama, uma bola de futebol americano jogada no chão, um caminhão de brinquedo, alguns porta-retratos por cima da escrivaninha e um notebook aberto mas desligado. Na sala de estar uma nova discussão parecia ter se iniciado, mas em tom mais calmo que a anterior. Dois vultos passaram pela porta e se uniram ao resto — ouviu as duas pessoas conversarem enquanto desciam a escada, e era a mesma menina que havia gritado, junto com uma voz masculina aguda. Todos pareciam estar na mesa de jantar e se ele tivesse avisado que ia antes poderia fazer até um pratinho, colocar arroz, feijão e frango — aquele cheiro era de frango mesmo? —, talvez um copinho de Coca-Cola.

Não é hora pra piadinha, pensou em seguida. Agachou-se ao lado da cama para pensar no que fazer. Precisava descobrir onde era o quarto dos anfitriões — e precisava descobrir rápido. Para ter acesso ao corredor precisaria sair do quarto do garotinho e isso envolvia passar pela entrada da sala de estar, onde poderia ser visto — ou escutado — por quem ali estivesse. Precisava de algo capaz de tirar a atenção de todos eles ao mesmo tempo, fazendo com que olhassem para o outro lado ou fossem todos para outro cômodo, talvez pra varanda pra respirar um ar fresco, ali dentro a fumaça e o cheiro de frango assado reinavam, misturados a um odor forte de perfume — e se nada disso acontecer? E se eles ficarem lá na sala de estar até a luz voltar? Aí eu tô mais que ferrado, não vou chegar em lugar nenhum, tenho que agir antes que a luz volte, antes que algum deles venha nesse quarto e me descubra — o blecaute havia sido a deixa perfeita e não podia ser desperdiçado por covardia.

Passos curtos e ágeis no corredor. Uma pessoa ou um animal? Felino ou canino? Respiração ofegante — um cachorro. As pegadas cessaram por um instante e o cachorro começou a latir, entrou no quarto e avançou em cima do ladrão — tudo por água abaixo, pensou ele, eu fui idiota demais, cheguei tão longe pra me ferrar por causa de um cachorrinho irritado. Uma mulher logo gritou da sala de estar.

Cala a boca, Duque! Cala a boca!

O cão era pequeno, peludo, branco com manchas marrons — era um Shitzu ou um Lhasa Apso? —, e num ato de misericórdia não mordeu o ladrão, ficou parado a um metro dele latindo, como se houvesse uma grade os separando.

Fica quieto!

A mesma voz masculina que havia feito piadinhas e discutido com um velho que mal conseguia falar comentou:

— Vocês já viram tratamento pra esquizofrenia dessa cachorra?

— É cachorro, André.

A mulher foi até o quarto — o coração dele começou a bater mais forte, ela estava dentro do quarto, não havia como escapar, o cão o denunciara, e ele em vão abaixou-se, impotente ao lado da cama, uma criança brincando de pique-esconde diante do inevitável delator de sua presença, sentia a mulher no quarto, se aproximando e estalando os dedos para que Duque parasse de latir. Ele poderia levantar, segurar a boca dela, mandar ficar quieta, se esconder, fingir que tinha uma arma e que estava apontada pra cabeça dela — mas seria cinematográfico demais, seu idiota, as pessoas na sala logo notariam a ausência e o silêncio dela, não tem o que fazer, você tem que se entregar. A distância até a janela era curta e ele poderia pulá-la com facilidade, sair e correr o máximo que pudesse, mas isso seria uma desistência e, além de tudo isso, ele não sabia a reação do dono da casa ao descobrir que havia ali dentro um invasor — faria um escândalo? Se uniria ao André e ao velho de voz errante para pegá-lo e dar uma surra no estilo bandido bom é bandido morto? Chamaria a polícia, que o alcançaria em poucos minutos, levaria ele pra delegacia, bateria nele até ele não conseguir se mexer e depois ele seria jogado dentro de um cela fedendo a mijo. Uma memória aleatória lhe ocorreu da forma mais inconveniente — era ele criança pulando um muro e correndo de um Rottweiler.

As luzes se apagaram antes que fosse servido o jantarحيث تعيش القصص. اكتشف الآن