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O perfume tinha que estar em algum lugar do quarto — bastava ele procurar melhor, olhar dentro das gavetas, debaixo das camisetas emboladas dentro da última porta do guarda-roupas, ou talvez tivesse esquecido no fundo do armário do banheiro, pode ter caído dentro do meu cesto de roupas, ele pensou num átimo, e correu para ver se as roupas ainda estavam lá, se sua mãe ainda não havia levado, podendo até ter deixado cair no chão enquanto colocava a calça jeans dentro de um saco bem grande junto com as cuecas esgarçadas de anos de uso, ouvindo o barulho de vidro quebrando e varrendo e secando e escondendo todas as evidências do descuido tal qual tivesse cometido um assassinato. Imaginou a mãe com medo de aborrecê-lo escondendo a cagada e no dia seguinte, indagada sobre o perfume, pedindo desculpas com uma cara de cão sem dono à qual ele não resistiria e aceitaria que já estava mais que na hora de se livrar daquele perfume — o único objeto que guardava de Níbia, o único que fazia-o viajar para dois anos e meio atrás, quando sua vida ainda estava de pé e ele ainda não havia se afogado dentro do próprio mundinho particular de ilusões e procrastinação.

Foi até o banheiro e encontrou o cesto de roupas vazio. Um alarme soou de seu celular e ele deixou tocar: sabia o que era — ainda tem mais essa, preocupou-se, eu tô mais que atrasado pra janta na casa da Rosane e ela pediu pra levar um vinho, não posso aparecer lá sem esse vinho de novo, ela me mata, dessa vez ela me mata. Pegou o creme de barbear e passou com generosidade na barba de quatro dias, espalhou a espuma, pegou a lâmina e passou no rosto com a delicadeza de um artista plástico, esquecendo mais uma vez que estava atrasado — mas o Roberto nem chegou ainda, acho que ele só chega lá pras sete horas, ainda deve ir buscar o seu João, não preciso me apressar tanto assim —, largou a lâmina em cima do mármore do banheiro e foi para o quarto colocar uma roupa.

O perfume, André, você tem que achar a droga do perfume. Colocou a roupa com pressa e voltou a procurar, não poderia sair sem ele, não sabia o motivo, mas não podia — era assim quando ele colocava algo na cabeça: quando achava que tinha que fazer uma coisa, devia fazer e pronto, nada o convencia do contrário, e ele não podia sair antes de sentir o cheiro daquele perfume mais uma vez.

Isso dá uma tirinha engraçada, ele refletiu, ou então uma daquelas meio reflexivas do Benett, sei lá, só sei que dá pra fazer tirinha, dá pra fazer tirinha de tudo que faz parte do nosso cotidiano — talvez aí resida o meu fracasso: pensar, pensar e não fazer nada, tenho muitos trabalhos medianos e já perdi muitos ótimos por só pensar e nunca fazer nada, nem tirinha nem conto nem crônica nem ensaio — muito menos o esboço de romance que abandonara no ano anterior, uma comédia trágica livremente baseada em sua própria família, com aquele tom às vezes absurdo que boquiabre na vida real mas que no papel soa como uma ficção fantástica inverossímil. Era o grande paradoxo do artista — artista não, pensou, isso soa pretensioso, adquire ares de prepotência que não cabe a mim ter, melhor dizer criador de conteúdo, ficcionista, não sei —, o grande paradoxo: pensava e não fazia, tornando-se um fracasso; no entanto, todos sabem que transformar o amálgama de pensamentos em texto ou qualquer conteúdo concreto corta pela metade a qualidade e limita tudo que havia pensado — o texto limita as ideias. Colocou uma calça jeans e uma blusa polo que parecia da Ralph Lauren mas era só a versão genérica que ele tinha comprado no Saara. Devia voltar a postar tirinhas no Twitter e seus contos no blog, uma hora o público apareceria — o perfume, André, procura logo a bosta do perfume. Foi até a sala e procurou em cada gaveta da estante — encontrou pilhas velhas, uma lanterna queimada, peças de teatro que havia escrito antes de fracassar em mais uma arte, esboços de cartuns daquela cor amarelo-tempo, uma lata de SBP, CDs antigos e um VHS de Rear Window que ele havia usado pela última vez há pelo menos uma década e meia. O telefone tocou. Era sua irmã.

— André, você já tá vindo?

Ele abotoou a calça e fechou o cinto.

— Já tô quase chegando, já — respondeu, o telefone apoiado entre sua orelha e o ombro.

— E como atendeu o telefone fixo?

— Rosane, relaxa aí que eu tô levando o vinho.

— Tá. — Ela se despediu com uma voz sorridente: — Vê se vem logo.

Pegou o bloco de notas e uma caneta para anotar as ideias que surgiam enquanto ele não podia desenvolver nada tangível — e que ele dificilmente usava, sem coragem ou disposição até para esboçar pensamentos e ideias aleatórias que ele preferia desenvolver de forma tácita — e entrou no Fox preto. Deixou o vinho no banco do carona e ajeitou os retrovisores. Quando chegou à casa da Rosane, dona Edma, Thamires e o namorado já estavam lá, mas Roberto ainda não chegara. Por instantes havia esquecido do perfume, até abrir o porta-luvas — misturado a uma enorme quantidade de documentos e contas para pagar: lá estava ele. Passou um pouco no pescoço, bem discreto, não queria que sentissem o odor de muito longe, entrou na casa da irmã e lanchou biscoito de água e sal com uma taça de vinho — excelente combinação, André, parabéns, tomar um Pinot Noir com biscoito Cream Cracker. Poucos minutos depois de o cunhado chegar a luz apagou.

— O que aconteceu com a luz? — perguntou dona Edma.

As luzes se apagaram antes que fosse servido o jantarNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ