Capítulo 02: Vida que segue.

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Voltando para casa dos meus avós esbarrei num cara na pracinha. Ele carregava um violão e cheirava a problema. Como sei disso? Alô, doutorado em romances água com açúcar, sei reconhecer um bad boy de longe. Sempre evitei todos eles, apesar de a mocinha que não precisava ser salva dentro de mim sempre me dizer ao contrário.  O cara não saiu da minha frente e logo pensei: se ele não para de me olhar, vou correr. Fez cara de poucos amigos e foi andando atrás de um grupinho de garotos que pareciam carregar instrumentos também. Será que eles tinham uma banda? Acho que vou rever meus conceitos sobre o cara, mas é claro só se houver uma banda. Daria um ótimo capítulo no meu diário, me faria suspirar como nos filmes de sessão da tarde com toda certeza. Desperto dos meus devaneios e atravesso a rua rumo ao prédio.

Comprimento o porteiro e subo. Encontro meus pais na sala vendo televisão enquanto vovó tira um bolo do forno. Meu bolo favorito.  Amava comer um fatia de bolo junto com queijo coalho e só conseguia fazer isso no Brasil. Lá fora existem os bolos mais deliciosos do mundo, mas nem de longe competem com os da minha vovó. Simples, gostoso e especial. Um toque de casa misturado com simplicidade. Sirvo-me e logo sento na varanda observando anoitecer.

- Liz você já arrumou suas malas? pergunta minha mãe me tirando do transe.

- Malas? viajamos só daqui um mês mãe. Digo e vou pôr o prato na pia.

- Eu sei querida, mas você sabe que imprevistos podem acontecer, não é? Digo, podemos receber um trabalho importante na França amanhã. Rotina não faz parte do nosso cotidiano. Ela diz pacientemente.

- É, eu sei. Vocês nunca sabem o próximo destino. Volto pra varanda

Isso me irrita bastante. Nunca vou ter uma vida comum de adolescente normal de dezesseis anos. Penso e vou em direção ao quarto, apesar de nunca começar discussões com os meus pais jamais escondi deles o meu desejo de ficar num lugar por mais de três ou seis meses. Conhecer vários lugares no mundo é incrível, porém nada se compara ao conforto do seu lar. E não me recordo de quando tivemos realmente um lar nos últimos cinco anos. Sento na cama e pego o diário, foleio as páginas antigas até encontrar uma de 2008 onde dizia sobre ter amigos.

24 de setembro de 2008

Querido diário, 

Queria ter amigos sabe? alguém pra lanchar no recreio que falassem português e não Inglês, Francês, Alemão ou Italiano. Adoro poder dizer que sei todas essas línguas, mas de que adianta? Nenhuma delas me aproxima de ninguém e nem faz ter amigos de verdade.

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Lembro exatamente do momento que escrevi isso, estava num colégio na França e mal falava a língua nativa, mas aprendi rápido graças ao meu tutor o senhor Bragança. Posso ver as palavras manchadas no caderno, lágrimas com certeza. Hoje, não choro mais com tanta frequência esse é o trabalho deles. O que me compra todos os livros, roupas, comida e me paga as melhores escolas. Mesmo não tendo um lar de fato um local fixo onde possa pintar paredes do quarto ou pendurar quadros tenho toda estrutura familiar necessária que um adolescente da minha idade deveria ter.

Reclamar é algo que deixei de fazer ao longo dos anos, pois me tornei ciente de meus privilégios. Às vezes não vejo sentido em algumas coisas que disse há três anos trás, porém não me envergonho delas a gente muda com tanta frequência e sempre acaba reinventando uma versão nova e melhorada de si mesmo, porém sempre tendo a consciência de que somos seres errantes. E que tudo bem errar, ninguém nasce sabendo.

O sol se põe, está indo visitar os outros lugares no mundo.Quando a noite chega observo os pássaros voando para seus ninhos e sou embalada pela música que toca nos fones de ouvido. É Scracho uma das minhas bandas favoritas brasileiras.

 "Mas você vai se olhar no espelho. Quando for chegada a hora. Vai mudar o cabelo, o seu look inteiro. E dizer que agora. É vida que segue!"  

Costumo dizer que é minha banda de verão, adoro a calmaria desse CD chama-se Mundo a descobrir. Gostaria de desvendar o mundo, mas sem sair do meu quarto na casa da vovó. Viver coisas novas, fazer amigos pelo bairro e ir ver o pôr do sol com amigos e violões curtindo o restinho da tarde. O desconhecido dessa cidade me encanta e me deixa com vontade de ficar aqui para sempre, mas amanhã posso estar em Londres ou na Itália e meus sonhos de uma noite em Recife são arrastados com as ondas do mar de boa viagem.   

Aconteceu no verãoWhere stories live. Discover now