Os olhos de Beatriz

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Era um fim de tarde bonito.

Calmo.

Estávamos cada uma com sua folha de papel, entretidas e caladas.

No fim ia ter disputa de qual era o desenho mais bonito.

Só quebrava o silêncio o grito da gavião fêmea numa das árvores.

Sinal de marcação de território e proteção de seu ninho.

De vez em quando nos olhávamos.

Pra ver algum sinal de quem terminaria primeiro.

Eu estava absorta, das outras vezes tinha desenhado algo.

Se é que aquele borrão sem expressão podia ser um desenho.

Dessa vez queria estar escrevendo.

Comecei a escrever.

Saiu um poema ordinário, fruto do tédio.

Ela terminou e eu não tinha desenhado nada.

Perdi.

Fomos conversar sobre banalidades, então ela me falou que a turma da sala dela iria a um encontro de estudantes no cinema do shopping perto da escola nos próximos dias.

A professora iria acompanhar os alunos.

Iriam assistir a um filme... perguntei se ela já tinha falado com sua mãe.

''Ainda não''.

Sua expressão ficou séria.

Seu olhar vagou por entre as árvores ao redor da casa.

Quando eu já estava cogitando que ela tivesse receio de receber um não de sua mãe, ela me disse que acha que quando crescer, não vai ter vontade de sair de casa.

Que não quer sair de casa... porque tem medo.

Medo do que todas nós temos.

Medo de ser estuprada.

Medo de sofrer essa violência.

Eu fiquei em choque.

Eu esperava ouvir qualquer coisa da minha priminha de 7 anos, menos isso.

Vendo que eu não falei nada para continuar a conversa (talvez achando que eu não me importasse com seu medo, não interpretando que ele era meu também), ela se explicou.

''Vi em um programa... a história das mulheres arrastadas em becos escuros... a apresentadora disse que pode acontecer em qualquer idade... o estupro...''.

A gavião gritou, nos assustando com um possível ataque apesar de estarmos há alguns metros de distância de sua árvore.

Saí daquele entorpecimento desagradável... a chamei para dentro de casa... ela continuou: tinha também uma menina, quase da minha idade, ela amava o avô dela, mas um dia ele entrou no quarto dela com uma faca e a estu... (dessa vez ela não completou a palavra, disse apenas isso e fez um gesto com as mãos).

Ela andou de um lado para o outro.

Eu poderia ter falado com Beatriz sobre a cultura do estupro e da pedofilia.

Poderia ter citados dados.

Poderia ter falado de patriarcado.

Poderia ter falado de feminismo.

Poderia ter falado muita coisa se ela não fosse uma criança.

Meu receio não foi de ela não assimilar, mas sim o contrário.

O brilho da infância podia estar por um fio.

O medo eu vi nos olhos dela.

Ela deve ter visto nos meus também.

Menina esperta.

Lhe disse que nós mudaríamos isso um dia, que essa violência teria fim, que ela poderia sair de casa tranquila, que ela teria uma vida feliz.

Que nós teríamos.

Que eu também tenho medo, mas não desisto... que se um dia alguém tocar nela... ela devia falar pros pais e familiares próximos... tentei dizer mais coisas, mas elas não quiseram sair... ficaram presas em algum lugar dentro de mim.

Alguns minutos depois a menina foi pintar o desenho das caveirinhas que ela fez.

Enquanto ela pintava, eu mergulhava em devaneios.

As palavras de força e resistência que eu queria dizer e que não saíram deviam estar presas dentro dos olhos de Beatriz.

Na dor e no medo também existem luta.

Textos AleatóriosWhere stories live. Discover now