Capítulo I + Book Trailer :)

528 61 62
                                    



Todas elas não deveriam existir. 

Havia uma garota loira andando pelas ruas frias de Londres, 1962, as mãos enfurnadas num casaco marrom que encobria as facas que carregava na cintura, penduradas no cinto da jeans que ela usava. Alice Lovett sabia que não deveria existir, e isso não a deixava dormir à noite. O fato dela ser uma Voodoo Doll já dizia tudo, alguém do mundo real não a quisera, a abortara ou então a assassinara de forma brutal e, agora, ela ficava ali, condenada a viver num mundo paralelo esquecido pelo tempo.

O que você faz quando sabe que não deveria existir? Se perguntasse à senhorita Vanderwald ela simplesmente diria para não se importar com essas coisas e retornar ao trabalho. As Voodoo Dolls eram a pior parte do mundo paralelo. A bosta do Conselho havia determinado, ao ver de Alice, que toda Voodoo Doll deveria ser ignorada, já que eles as culpavam por toda a desgraça que acontecia.

- Desculpe – ela disse, seus olhos caramelados não olhando as feições do homem no qual ela esbarrara. Ele a xingou e continuou andando.

Os humanos nem se quer sabiam que haviam outros seres vivendo no meio deles, o que os tornavam autodestrutivos. A garota continuou andando, o vento gelado batendo contra seu pescoço nu. Alice sabia que, para onde estava indo, não encontraria calor algum. A realidade se tornaria ainda mais fria, mas ela tinha de fazer isso.

Fazendo uma curva na Oxford Street, Alice entrou na Tottenham Court Road, sabendo que bastavam apenas alguns passos para chegar até a casa que procurava. A Tottenham Court Road estava silenciosa, algo que a surpreendeu. Os grandes prédios que circuncidavam a rua eram imponentes, com tons secos de amarelo e cinza, deixando tudo de certa forma deprimente. O sol não havia tido coragem de se fazer presente, e agora as nuvens dominavam o céu que outrora estivera mais claro. O vento frio se intensificava conforme a garota sentia o peso das facas contra a sua cintura, a blusa azul, por baixo de seu casaco, grudava em seu corpo. Havia um homem sentando, de terno, um charuto enfiado no meio da boca enquanto lia uma matéria no jornal daquela manhã. A manchete principal declarava que um assassino estava à solta nas ruas de Londres e que ninguém, especialmente mulheres, deveria ficar na rua até tarde da noite.

A garota chegou à Great Russel Street e se deparou com a casa que procurava. Ela tinha o mesmo tom pastel que os prédios que estavam atrás dela. Uma longa janela de vidro permitia que a garota observasse o interior da frente da casa. Havia uma garota loira ali, sentada bebendo seu café matinal, comendo uma torrada com manteiga. Ela estava com um vestido que ia até suas coxas, comprido. Parecia apressada e seus olhos estavam cansados.

Alice ia visita-la todos os dias, observando-a do outro lado da rua, imaginando o que levara aquela mulher a abortá-la. Alice sabia que aquilo a destruía aos poucos, consumindo-a por dentro, mas a ideia de matá-la a se fazia sentir melhor. A faca pareceu esquentar em sua cintura conforme ela via a mulher saindo de casa, limpando os farelos da torrada de seu vestido.

Por que ela deveria matá-la? Por causa dela Alice estava ali, os ombros cansados e os cabelos sendo tomados pelos ventos insolentes. Depois de um tempo, a mulher desapareceu de vista. Alice não sabia o nome dela. Não sabia onde trabalhava. Não sabia se ela tinha uma voz melodiosa ou estridente. Não. Alice apenas sabia que ela a havia condenado a ser uma Voodoo Doll, mesmo que ela não soubesse disso.

A garota abaixou os olhos, fitando seus pés protegidos por um sapato de bico fino preto. Mais uma vez ela se virou, a faca agora já não pesava tanto em sua cintura. Alice se considerava fraca por não conseguir matá-la, mas havia algo naquela mulher que sempre a impedia. Talvez, pensava ela, se ela a matasse não seria ninguém diferente, apenas teria condenado sua alma pelo resto da eternidade.

No caminho de volta pela Tottenham Court Road ela se sentia sozinha. Por mais que houvessem outras Voodoo Dolls, nenhuma era como ela. Brittany, sua companheira de quarto no Voodoo Dolls Orphanage, havia matado a mulher que a abortou. Cinco facadas desferidas diretamente na garganta, que se estraçalhou com dificuldade. Alice ficou surpresa em saber que O Conselho não intervira na ação de sua companheira de quarto.

Uma outra garota, Loretta, havia matado seu assassino. Ele a havia estrangulado enquanto a estuprava. Loretta o matou enquanto ele dormia, jogando água quente sobre o rosto dele e, depois, cortando sua garganta, vendo-o gritar e se engasgar com o próprio sangue até o último minuto. Alice queria poder ser igual às outras, mas não. Ela se impôs a um fardo de observar aquela mulher todos os amaldiçoados dias de sua existência.

Alice ergueu a cabeça, tentando distrair seus pensamentos, enquanto virava na Oxford Street, o local do lar das Voodoo Dolls. O local nada mais era que um grande prédio com oito janelas embaçadas e sujas, com uma porta que rangia toda vez que alguém entrava. O escritório da senhorita Vanderwald ficava no último andar, mas para os humanos nada mais era do que um prédio comum, cinza, com três andares e uma cafeteria no primeiro piso. O Conselho achava melhor assim, esconder todos os locais do mundo paralelo dos humanos.

Alice franziu o cenho ao focalizar seus olhos num rapaz pálido, seus cabelos pretos bagunçados criavam um contraste com sua palidez fantasmagórica. Seus olhos escuros como a noite focalizaram os dela e, por um breve momento, ela sentiu como se minúsculas formigas subissem por suas costas, arrepiando todo o seu corpo. Numa súbita troca de olhares, o prédio da Voodoo Dolls Orphanage explodiu, arremessando pedaços de concreto para todos os lados. Os humanos gritaram quando foram pegos de surpresa, uma fumaça densa se levantou do chão. Alice foi arremessada contra um carro, suas costas doeram instantaneamente conforme ela caía no asfalto.

A garota, agora, tinha os cabelos loiros decorados de branco, sua testa sangrava e ela tentava se apoiar nos braços frágeis. Havia uma mulher, descalça, correndo desesperada pela rua, gritando por ajuda por seu marido, que havia tido a perna esmagada por um dos pedaços de concreto. Alice bufou, seus ouvidos zuniam quando uma segunda explosão aconteceu. Agora, estilhaços de vidro voaram por todos os lados, cortando a bochecha da garota.

Com esforço, Alice se levantou, correndo na direção do amontoado de concreto do que um dia fora o Voodoo Dolls Orphanage.

- Brittany! – Ela gritou e depois sorriu, aliviada de ver a cabeça ruiva garota se movimentando na direção dela.

- A... – A ruiva tentou dizer enquanto corria na direção da companheira, mas antes que pudesse completar a frase, um vulto preto a agarrou, desaparecendo com ela.

Um grito estridente soou atrás da garota. Alice se virou. As pessoas corriam, não se sabia ao certo quem eram as Voodoo Dolls, mas Alice podia vê-los. Vultos pretos agarravam as mulheres e, logo em seguida, desapareciam entre as sombras. Alice não sabia o que fazer, as pernas doloridas e o medo invadindo seu corpo. Ela pegou as duas facas que estavam em sua cintura e esperou, ouvindo o batimento aceleradamente dolorido de seu coração.

Num momento, tudo ficou silencioso, o vento pareceu parar e os olhos caramelados da garota se focaram no animal que vinha em sua direção. O rosto da besta era uma mistura de carneiro com dentes de navalha, seu corpo era revestido por pelos escuros e suas patas se assemelhavam a mãos, com exceção das gigantescas unhas pontiagudas que, sem o menor esforço, perfuravam a pele. Alice sentiu a boca ficar seca e amarga. Ela cerrou o punho envolto à bainha da faca.

A besta se jogou contra ela, derrubando-a no chão, tentando agarrá-la. Alice, com uma das facas, cortou o rosto do animal, arrancando-lhe pelos e um grito que a fez estremecer. O animal fixou seus quatro olhos negros nos dela, observando-a, parecendo decidir se iria matá-la ou não. Quando o animal fez sua escolha e escancarou sua bocarra, uma chuva de sangue preto voou sobre ela. O líquido quente e gosmento sujando sua pele clara. O animal tombou ao seu lado.

Ali estava ele. O homem com a pele tão pálida quanto a neve e os cabelos tão escuros quanto a alma da garota. Ele estendeu sua mão, ajudando-a a levantar e, antes que ela pudesse dizer alguma coisa, eles desapareceram dali. Alice fechou os olhos, tentando apagar de sua memória os gritos angustiantes das pessoas que foram deixadas para trás.

Voodoo Doll - O DespertarWhere stories live. Discover now