14 - O coração era apenas um

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Empurrou a grande porta do escritório.

- Isso não está certo! Tudo o que vocês devem fazer é mandar os concorrentes enfiarem essas salsichas no...

- Rei?

O Rei do Enlatado estava em seu trono, ditando ordens aos seus súditos furiosamente. Era só uma grande mesa de carvalho e a cadeira giratória mais espaçosa do Rio de Janeiro, com seu pai, mais largo do que nunca, berrando impropérios no celular. Mas Arthur gostava de medievalizar as coisas. Era mais fácil assim.

Todas as paredes da sala eram cobertas com livros de Economia, Administração, Contabilidade e outras áreas que faziam Arthur bocejar só de ver o nome. O Rei incrivelmente se encontrava naquela bagunça onde os livros não respeitavam nenhuma ordem lógica. Se dava para pôr em ordem alfabética, por que não fazer isso? Uma pessoa com TOC morreria de agonia ali dentro.

- Filho! – o Rei olhou para ele e voltou a atenção para o celular por uma última vez – Isso, exatamente, mandem esses idiotas enfiarem tudo lá... No container de volta para a Índia.

De uma coisa, ele não podia reclamar: Da atenção que o Rei lhe dava. Existia um vasto reino para cuidar, mas o Rei do Enlatado se preocupava demais com o futuro do seu filho, o que, indiretamente, era se preocupar com o futuro da salsicha e da sardinha em lata.

- Rei, preciso fazer uma pergunta. Hipotética.

- Manda.

Diziam que Arthur tinha a cara do Rei, mas ele não conseguia se ver no pai. Talvez, por baixo de todo aquela carne sobressalente existisse uma versão adulta de si mesmo, mas tinha certeza de que jamais a veria. O Rei sempre fora gordo e nada saudável. Mel surtava toda vez que vinha jantar na casa, porque o Rei comia feito um porco, sem nenhuma preocupação com a saúde.

- Quais são as chances de eu passar, hipoteticamente, um ano no Canadá?

- Como é que é? – A pergunta não fora no tom mais amigável.

Aparentemente, o Canadá era um dos assuntos mais impopulares do ano. O Rei levantou-se de um salto do seu trono. Na terceira tentativa, porque nas duas anteriores a gravidade fez seu trabalho. O pai apoiou-se na mesa de carvalho.

- Nem pense em largar o Brasil de novo, Arthur! Você sabe o que está em jogo. E Canadá? Estamos abrindo filiais em três estados, já comandamos o sudeste! E você tem que se apoderar disso.

- Mas, Rei... Eu disse hipoteticamente.

Porém, para bom paranóico, meia informação bastava.

- Hipoteticamente! Conheço o filho que tenho. Eu tento te apoiar, Arthur, mas você nunca se engaja! Ano passado você quis retornar às suas raízes orientais indo para o Japão, sendo que você nasceu em São Paulo, tenha dó! – O pai estava bufando – Eu atendi o apelo da sua mãe e...

Dali em diante, tudo o que o cérebro de Arthur computou foi a mesma ladainha. O Rei havia atendido o pedido da Rainha de não afogar o filho nos negócios por enquanto. Deveriam deixá-lo fazer as próprias escolhas e, assim como fora com todos os herdeiros do império, uma hora ou outra ele acabaria sentindo a vocação que estava em seu sangue. Esse discurso seria lindo se a vocação não fosse entupir as pessoas de feijão, salsicha e botulismo. Obviamente, a vocação não tinha batido na porta de Arthur. Ele havia descoberto um mundo totalmente novo na Informática, na internet e nos games. E, às vezes, ele queria dizer isso literalmente, porque Batalha dos Reinos IV era, de fato, um mundo novo e melhor. Onde cada um podia ser o que quisesse, e até um nerd loser podia ser Rei.

O Rei de verdade ainda falava.

- ... Você vai terminar sua faculdade e depois vemos o que será feito! Você já é um adulto – Arthur se sentia um adulto de araque. Em situações em que a presença de um adulto era requisitada, ele sempre procurava por uma segunda pessoa até lembrar de si próprio - Deveria ter ido para Administração, mas agora vai terminar o que você escolheu cursar...

Não Somos UmWhere stories live. Discover now