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Leandro nunca teria o que propunha. A década e meia de amizade era a única garantia de sigilo — a única coisa que impedia-o de jogar tudo pelos ares e acabar com a vida profissional do amigo de longa data. Era absurdo, refletia ele, saindo do banco e entrando no Elantra cinza de retrovisores cobertos por aquela fina camada de poeira acumulada de oito dias desde a última vez em que o carro vira água, o Leandro não vai fazer isso, não vai, eu sei que não — e ecoavam em sua mente as palavras do amigo tal qual vaticinasse uma escolha cruel: e aí, Roberto, tá dentro ou não?

Seu pai dissera que o esperaria na portaria do consultório assim que a consulta acabasse, e lá estava ele atravessando a cidade para buscar o pai que, a duas quadras dali, jantaria sua própria comida e pouparia o contato com a ex-mulher, com a nora, com os netos, com o irmão da nora e com quem quer que pudesse importunar seu silêncio sagrado — ele tá quieto demais nos últimos dias, pensou ele, deve estar pensativo por causa das conversas com a psicóloga. Lamentou a existência daquela palavrinha de cinco letras que o impedia de saber sobre o que andavam conversando: maldita seja a ética. Tirar uma palavra da boca de seu pai era desafio antigo — havia uma resistência tácita quando se tratava de eventos passados, e qualquer tentativa de quebrá-la resultava em um seco deixa o passado pra lá, Beto, repetido em todas as vezes que Roberto comentava algo do passado, e isso abrangia a maior parte do que falava. Devia falar menos do que já tinha ficado pra trás, disso ele sabia — tinha orgulho do que se tornara, mas não conseguia se livrar daquela nostalgia às avessas, o orgulho que tinha de ter sobrevivido a todos aqueles eventos ruins, de ter feito tudo aquilo se tornar uma memória distante, mesmo que rememorada diariamente frente às censuras balbuciadas constantemente pelo pai.

O pai estava lá como de costume — a mesma feição de indiferença, como quem não está onde quer, como se fantasiasse a própria morte, como se olhasse para o mundo ao redor pensando que perderia tudo aquilo em breve. Não sabia se era disso que ele e a psicóloga conversavam, sobre essa morbidez toda, os pensamentos negativos que invadiam-no há alguns meses, aquela sensação persistente de que a morte estava na porta, mesmo que sua saúde estivesse boa para a idade que tinha, tendo apenas uns poucos problemas, comuns às pessoas de idade. Setenta e cinco anos. É coisa pra caramba, refletiu, abrindo a porta do carro para o pai entrar. Talvez as conversas girassem em torno dos traumas que tinha das décadas de sessenta e setenta, talvez o começo de oitenta, traumas dos quais sempre se recusara a falar, assim como do passado inteiro, sabia. Odeio essa psicóloga — não dá pra ela simplesmente falar sobre o meu pai? Eu tenho todo o direito de saber sobre a saúde mental dele, sua imbecil. Não posso, senhor, ela diria. E pediria para tratá-la com mais respeito. Nada mais justo.

— Boa noite — disse o pai com a voz grave e cansada e rouca que já vinha se tornando a identificação de sua fala.

— Como foi a consulta?

Ele fazia pausas longas e constrangedoras antes de responder qualquer coisa, como quando há um delay na transmissão de um jornal e o repórter demora alguns segundos silenciosos e eternos antes de responder o âncora e dar prosseguimento à matéria.

— Boa.

Roberto colocou a playlist do Chico Buarque no Spotify. Fizeram silêncio durante o resto do percurso.

— Acho que todo mundo já chegou — disse ao pai, destrancando a porta do carro para que ele saísse e observando o Fox do cunhado e a Honda velha do namoradinho da filha. O pai saiu e entrou em casa sem dizer uma palavra.

A casa tinha dois andares e uma palmeira na entrada com uma proximidade preocupante entre as folhas e os fios de energia do poste da rua — dar um jeito nisso, anotou mentalmente. Deixou os sapatos junto com os outros na porta e ligou o computador antes de falar com qualquer pessoa na casa, hábito de anos, enquanto seu pai ia em direção à sala de jantar, ao encontro inevitável com o resto de sua família. Apertou o botão de ligar o computador e seguiu o pai. Na mesa de jantar estavam sua mãe, reclamando da cortina da sala que era curta demais e que isso deixava a sala muito feia, seu filho pequeno, se divertindo no tablet da Samsung com um jogo de ônibus escolar e fazendo os sons do coletivo com a boca, e seu cunhado, sempre com um bloco de notas e uma caneta na mão. Sua mãe disse um bom-dia exageradamente cearense e riu assim que ele chegou — ela achava engraçado dizer aquilo não importasse a hora do dia, a ênfase no i, e dava sua risada curta, um hehe pra dentro seguido de um sorriso sem graça com a boca pequena. Roberto deu boa noite e perguntou por sua esposa. Tá na cozinha, disse sua mãe. Seu pai se sentou na cadeira da ponta e ficou olhando para o centro da mesa com a impassividade de um jogador de pôquer experiente. Na mesa já estava o suco Ades e uma garrafa de vinho chileno aberta, uma taça metade cheia, nove copos, um pacote de Cream Cracker e um saco de pão vazio.

— Não deu pra te esperar, garotão — disse o cunhado. Roberto deu um sorriso afetado. Às vezes pensava que o cunhado seria a última pessoa pra quem ele pediria ajuda num momento de tristeza — e na frente dele na lista estavam o filho pequeno, toda sua família, os amigos mais próximos e o mendigo que pedia esmola na frente do banco.

— Tomei café no trabalho e a janta já tá saindo, mesmo.

Sua esposa saiu da cozinha e foi até ele, se beijaram por um breve segundo e ela disse que o jantar estava quase pronto. Hálito de café e sabor de batata doce.

— Cadê a Thamires? — perguntou quando a esposa já estava de volta na cozinha.

— Deve tá lá no quarto.

— Com o namorado?

— Deve ser.

Torceu o nariz. Caminhou escada acima até o quarto da filha e encontrou ela e o namoradinho se agarrando. Pigarreou para chamar atenção e mandou os dois para a sala no tom ao mesmo tempo rude e compreensivo que sua voz carregava. A filha gritou de susto e o moleque se afastou subitamente. As luzes se apagaram em seguida.

As luzes se apagaram antes que fosse servido o jantarWhere stories live. Discover now