Conto 01: Frio - Neto Andrade

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Título do conto: Frio.

Nome do autor ou pseudônimo: Neto Andrade.

Cidade e estado a qual a história é ambientada: Curitiba, Paraná.

Censura do conto e o gênero literário: "L" segundo a classificação da TV: violência fantasiosa, morte implícita sem violência; consumo implícito de droga legal. Nenhuma incidência de sexo ou palavras de baixo calão. Crônica narrativa; história baseada em fatos reais com liberdade poética.

Pequeno resumo do conto ou sinopse: O cotidiano de Curitiba, seu dialeto e moradores, através do olhar de um de seus habitantes mais famosos.

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Hoje é mais um daqueles dias. Céu escuro, chuva que mal e mal se sente, miúda, miúda mas que quando se vê, cobre tudo, mato, pedra, árvore. E o frio. Frio que gela os músculos, que não dá vontade de se mover. Meus avós falavam sobre uma terra que não era tão fria, onde o sol brilhava mais e podíamos nos aquecer. Terra de comida e espaço abundante.

Aqui, o Sol tem vontades e caprichos. Passam-se semanas sem que ele apareça, só com chuva e frio. Ou o céu pode limpar em um piscar de olhos, e o seu brilho e calor inundar tudo com força. É uma terra imprevisível. Hoje, acho que ele não vai sair. Então, saio eu. Não tenho escolha.

Cada movimento é uma tortura. Me arrasto sobre o mato gelado e escorregadio. Devagar, com cuidado. Em algum lugar acima de mim, folhas recolhem todos os pingos pequenos e os transformam em uma gota grande líquida gelada, que invariavelmente atinge minha cabeça e meus olhos. Não sou mais tão jovem, mas também estou longe de ser idoso. É o tempo, o frio danado que me tira a disposição.

Avanço em direção a uma pedra. O vento, de alguma forma, me atinge por todos os lados. Frio, frio. A pedra, pelo menos, retém o mínimo de calor. Já ouvi falar sobre isso. Que as pedras dessa terra nunca serão senão pedras. Pedras, a lua esfria e o sol esquenta. Paulo Leminski. Falam muito esse nome, por aqui. Certamente alguém importante. Me refestelo sobre a pedra, tentando absorver um pouco do calor que resta. De um lado, a uns dez, doze passos, a água só incomodada por um ou outro pingo que as árvores engrossam e algum peixe que sobe sem porquê. De outro, mais perto do que geralmente gosto, na trilha de cascalho eles passam, tagarelando.

E como falam. Falam e trotam. Não sou um ignorante. Consigo entender quase todos aqui. Quero-queros e carcarás só descem do seu latifúndio azul para comer e, de quando em quando, botar um ovo. Sem pedir licença, com a certeza esnobe que, com um bater de asa, estão livres de todo perigo, acima de todos. Babacas. As garças, essas são os únicos pássaros que respeito. Não abandonam o lugar, e imagino que detestem o frio tanto quanto eu. Temos um acordo não-verbal. Elas ficam com sua parte da lagoa, eu fico com a minha. O grande arco de pedra cinzenta, por onde o rio passa por baixo e, por cima, o estouro eterno de carros é a nossa fronteira. Quase sempre.

"Carros" é como se chamam as caixas de metal. Uma das muitas coisas que se aprende nessa lagoa. Basta ver, ouvir, vigiar. E para fazer isso melhor, não se pode respeitar muito as fronteiras. Muitas vezes eu passo por baixo do arco de pedra e avanço um pouco. Não muito. Até o primeiro arco de madeira, ali, na altura da grande caverna amarela. As garças não ligam. Elas se reúnem, mais para baixo, perto da cachoeira.

Como eu sei que há uma cachoeira se disse que nunca vou até lá? Cachorros.

As pacas e capivaras são de uma estupidez atroz. É bom que passem grande parte do dia pastando, pois daquelas bocas não sai nada que preste mesmo. Sua única qualidade é terem filhotes saborosos. As ovelhas? Não comece com as ovelhas, bichos fedorentos que se acham donas disso tudo, mas que não entendem que só saem quando eles querem, são trancadas quando eles querem.

Muito Mais que Verde e AmareloWhere stories live. Discover now