Pandora, porque todos os que têm Olímpia morada

deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão.

(Hesíodo - Os Trabalhos e os Dias; v. 77 — 82)

***

LEMBRANÇAS

          Sentada sobre uma rocha, uma mulher mantém seu olhar fixo no horizonte. O vento do deserto acaricia seus cabelos negros. Sua respiração é quase imperceptível. Ela fecha os olhos e se lembra de uma briga com seu pai quando tinha dez anos.

          — Vá brincar no jardim.

          — Sim, mamãe.

          A menina segue pelo largo corredor que dá acesso ao jardim e à sala sagrada da casa. Ela vê o pai saindo da sala, mas percebe que a porta não havia se fechado totalmente. Ela poderia ter avisado ao pai, ou simplesmente ter ignorado o fato e seguido para o jardim, mas algo parecia chamar-lhe para dentro. Quando percebe que o pai havia desaparecido no final do corredor, ela entra. Um frio intenso quase paralisa a menina, era medo de ser pega. Seus olhos apreciam, admirados, toda a beleza que há ali, e quando observa bem ao centro, vê a bela espada ancestral. Ela corre para perto da espada, suspensa sobre um sol dourado cravado no chão. Os olhos da menina brilham e a lâmina da espada parece refletir a luz de sua alma. Como se estivesse em transe, ela ousa empunhar a espada com as duas mãos; nesse momento seu pai entra na sala, furioso. Ele toma a espada bruscamente, bate no rosto da menina e a pega com força pelos ombros, sacudindo-a e proferindo sandices aos berros, então conclui:

          — Como ousa profanar o salão das armas com sua presença imunda? Você é uma mulher, jamais deve tocar nessas armas; você nunca poderá usar uma espada como essa; é a espada de meus ancestrais. Você me desonrou com sua imprudência e sua desobediência.

          O pai a tira da sala puxada pelos cabelos. Perto da porta, no corredor, alguns criados, a mãe e suas damas esperavam pelos dois. O pai joga a menina aos pés da mãe.

          — Veja, mulher; sua filha não recebeu a devida educação. A culpa é sua.

          A mãe ouve tudo de cabeça baixa.

          — Por não ter educado direito essa menina, agora não terei mais a bênção de meus ancestrais. Esta família cairá em desgraça.

          — Peço perdão, meu senhor. Cuidarei de castigá-la.

          — Castigos agora seriam tardios demais. O mal já está feito. Tenho uma reunião com o Conselho, quando voltar decidirei o que será feito de vocês. Que nenhum dos presentes comente o fato com mais ninguém. Se essa história chega aos ouvidos do Conselho, a menina será sacrificada. Tal desonra é punida com a morte, como todos aqui bem sabem.

          O pai olha com ódio para a menina.

          — Talvez, no seu caso, seria mais sensato entregá-la ao Conselho.

          Após o pai sair, a mãe vai chorando para o seu quarto. A menina continua no chão, sozinha, com o olhar fixo, quase morto. Rangendo os dentes de ódio, fica ali por um tempo, com seu choro sem lágrimas.

          — Artemísia, o mestre a espera.

          Artemísia abre os olhos e retorna para o deserto. Seu olhar agora contempla o horizonte vermelho de Marte. Ela se levanta e segue em direção ao templo.

Artemísia (Habitantes do Cosmos, #2)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora