– Ela fugiu completamente da garra dos pais – comentei, orgulhosa da irmã mais velha de Henrique.

– Mais ou menos. Às vezes ela ainda liga no meio da noite para perguntar se a mãe está tomando todos os remédios direito, sem misturá-los com álcool.

– Ela é uma boa pessoa.

– Tatiana? Sim. Minha mãe? Bom, ela mistura tarja preta com álcool, então não estou muito certo disso.

Henrique deu uma risada autodepreciativa que cortou meu coração. Ele podia reclamar o quanto quisesse dos pais, mas era óbvio que se importava com eles. Me sentindo estranhamente corajosa, apertei seu joelho direito numa tentativa de reconfortá-lo. Ele me deu um sorriso tão cheio de afeto, que fez meu estômago se contorcer sem saber como reagir.

– E Lucas? – perguntou, sussurrando as palavras. – O que aconteceu? Cheguei tarde ontem e encontrei vocês sentados aqui, com uma garrafa praticamente vazia de Absolut. A última vez que vi Lucas desse jeito, demorou duas semanas inteiras de muita música emo para passar... e a última vez que vi vocês dois juntos desse jeito, você sabe muito bem o que aconteceu!

Brigas, mudanças, álcool, polícia e relacionamentos que não voltariam mais. Eu me lembrava como se fosse ontem. A ressaca incluída.

– Não me arrependo nem por um minuto.

– Nem eu – concordou Henrique, sem hesitar. Ele coçou a babar por fazer, fazendo soar um barulho áspero. – O pai de Lucas teve toda razão de surtar quando viu o estrago que vocês fizeram no carro. Eu também teria ficado puto da vida se estivesse no lugar dele... mas aquele filho da mãe mereceu tudo o que vocês fizeram.

Eu assenti, concordando com Henrique. Seu Carlos merecia aquilo e muito mais.

No dia em que a mãe de Lucas tomou consciência de sua vida e abandonou a casa, Lucas e o pai brigaram como nunca tinham feito antes. Não apenas uma discussão verbal, mas coisas foram quebradas e arremessadas contra pessoas. Lucas saiu de casa antes da polícia chegar e não havia voltado para lá desde o dia anterior.

No dia seguinte, uma sexta-feira, eu estava atrasada para aula porque Rafael havia escondido meu celular. Eu cheguei esbaforida na escola vazia, para encontrar Lucas do lado de fora, parecendo uma daquelas bonecas de pano muito gastas, de tanto que a criança empurrou e arranhou e pulou em cima. Não foi preciso palavras para explicar o que havia acontecido. Eu tomei toda sua raiva e dor para mim. Com a mãe que foi embora. Com o pai imbecil. Com tudo o que Lucas estava sentindo e que eu não conseguia interromper.

Por fim, insisti que fossemos à casa dele. Se não podia fazer nada para consertar um dos meus melhores amigos, então quebraria aquilo que o machucou. Dramática? Talvez, mas eu sabia que Sr. Brutamontes estava no trabalho e sabia exatamente qual era seu bem mais precioso, sua galinha dos ovos de ouro, cuidada muito melhor que qualquer ser vivo: seu carro.

No fim do dia, havíamos destruído todos os detalhes importantes do tão precioso veículo. Marcas de queimado de cigarro decoravam os bancos, assim como a fumaça do pacote inteiro que Lucas fumou ali, com apenas uma fresta de janela aberta.

Ainda houve o uísque da prateleira mais alta que bebemos e a cerveja ruim que deliberadamente derramamos nos bancos. Sinceramente, não havia nada além do ato em nossas cabeças. A única consequência que pensávamos era em como o pai iria morrer de raiva – e isso nos enchia de uma alegria doentia.

Saímos da casa com uma mochila de roupas, outra com livros e o violão de Lucas, antes que Carlos chegasse. Podíamos estar bêbados, mas sabíamos que se nos pegasse no flagra, estaríamos mortos. Sem exagero.

Duas vezes amorWhere stories live. Discover now