A Garota Na Caverna

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Os sons. Os sons das vozes, mesclando entre as sussurradas e as gritadas, entre as doces e calmas, e as enfurecidas e gélidas. Os sons das vozes passavam pelas rachaduras e fissuras das grossas paredes pulsantes, mas não chegavam a atingi-la. Eram muitas vozes, muitos sons diferentes juntos para que ela pudesse absorver algo realmente. Era como se tudo não passasse apenas de um barulho abafado, o que na verdade era exatamente isso.
Ela não se importava com o que as vozes lhe diziam. Talvez esse fosse o problema afinal, o problema de ela ser como era. Talvez o fato de não se importar com o que achavam ou pensavam dela fosse o problema. É, talvez ,pensou.
Os últimos acontecimentos de sua vida a fizeram questionar se ela realmente tinha um problema ou as outras pessoas é que tinham. Afinal qual é o problema de não sentir? É muito mas fácil e menos doloroso, não sentir nada. Não era culpa dela o fato de todas as pessoas a sua volta necessitarem tanto de sofrimento, de angústia e de magoa. Ela estava confortável não sentindo,muito obrigada.
A garota nunca entendeu essa fascínio da sociedade em precisar sentir. Sentir muito,sentir tudo. Tanto faz, ela não gostava dessa ideia. De fato, não suportava essa obrigação de sentir. Era ridículo o fato de a rotularem como "frigida" e insulta-la com outros apelidos, um tanto, peculiares. Ela não era obrigada a fazer ou ser o que as pessoas queriam, e muito menos, corresponder a tais expectativas, já que essas não eram as que a garota queria para si mesma. Ela queria mais do que as ideias monótonas e ultrapassadas de um futuro promissor e carreira renomada tão dita e imposta a si. Ela queria ver o que a vida tinha de novo e de diferente. Ela queria mais do que um emprego, de 8 às 17 h, cinco dias por semana atras de uma mesa de escritório.
Ela queria ser mais do que só alguém que anda vagante pelo mundo. Ela queria mudar o mundo. Sua cabeça nunca funcionou como a do resto das pessoas. Ela só queria ajudar os outros, conhecer novas culturas e conseguir mudar, pra melhor, pelo menos uma ou duas vidas. Ela queria poder sentir a sensação de fazer o bem.

A confusão de sons ficou mais nítida e sintonizada. Uma das vozes, agora, gritava um pouca mais alta que as outras, fazendo-a ouvir com mais clareza.

- Porque você é assim?- Gritou a mulher -Porque você é tão fria e insensível? Meu Deus o que eu fiz de errado pra que você ser assim ,garota? Diz pra mim! - Se desesperou, porém a menina se manteve calada continuando a tarefa árdua de escovar os dentes - Olhe pra mim quando eu falo com você!- A garota a olhou pelo reflexo do espelho, encontrando seus olhos arregalados e narinas infladas enquanto a mulher respirava fortemente tentando segurar a raiva óbvia- Eu sempre te dei tanto amor e carinho... Não consigo entender o que aconteceu pra você ficar assim...tão...tão...não consigo nem definir você!- porem a menina se manteve neutra enquanto continuava a ouvir meias palavras e não se deixar atingir com o que absorvia daquele discurso um tanto ...inspirado- Você mudou. Você sempre foi uma menina doce e meiga. O que aconteceu pra você mudar tanto e se transformar dessa maneira? -insistia a mulher. Porém a menina se manteve sólida, distante, e voltou a se fechar.

A menina outra vez se isolou na caverna, onde tudo era só dela e como deveria ser. As paredes ainda pulsavam, ainda estremeciam.

Sua caverna era aconchegante do jeitinho dela, a mistura perfeita entre antiga e moderna. Livros, poesias, palavras rabiscadas em suas paredes. Desenhos e mais desenhos. Toda a arte existente. Era bagunçada e arrumada ao mesmo tempo. E nela, música era obrigatória. A comunicação era corporal, musical, era movimento; era algo que transcendia. Lá se falava com sons, escalas musicais, firulas e melismas. Lá nunca foi necessário falar realmente, não, não precisava, pois o corpo falava, era alma, espírito, sentimento. Era só assim que ela sentia, com a alma e com a própria vida.
Pra ela luxo era permitido, mas apenas o seu tipo de luxo. Ostentação pra ela era conhecimento, era arte, era história. Sentava no chão, coque no cabelo, seus óculos de grau e uma caneca de chá na mão, aspirando a fragrância, doce e suave como ela gostava, e bebericava, vez ou outra, o líquido fumegante de cor âmbar, enquanto suas mãos miúdas envolviam a caneca quentinha. As lentes dos óculos embaçavam pelo vapor. O líquido quente descendo por sua garganta era puro êxtase. Rodeada de papéis de todos os tipos, todo o tipo de história e aventura, canetinhas coloridas e lápis de cores diferentes, vibrantes e fosforescentes, mas sempre tinha por perto uma caneta ou um lápis de grafite, poesia não tem hora marcada pra ser feita, acredite. Ela gostava das cores, das texturas e dos tecidos, das capas velhas dos livros, o cheiro das folhas novas. Aroma era uma coisa que a encantava e trazia lembranças prazerosas, pois pelos cheiros é que se criam memórias. Odiava ler em folhas brancas, isso era uma verdade.
Ela gostava de astrologia, já odiou também, mas isso é papo pra outro dia, pois já é passado e agora ela vê, nisso, beleza. O cosmos a encantava, era como se o universo fosse o maior paradoxo dos milagres da vida. Era um infinito de escuridão vasta composta por tantas formas, colorido e magia. Era brilho e encanto e ao mesmo tempo um enorme vazio, era uma infinidade de vidas e ainda assim tanta escuridão. Era ,mais ou menos, como se sentia, como um ditado chinês, um yin e yang ambulante.

Outra voz se embrenhou pelas fissuras, num tom indignado. Invadindo seu espaço e impondo sua 'opinião'.

- Porque você se exige tanto? Se esforça tanto?Errar é humano -disse a voz, porém a menina sabia disso, ela tinha essa consciência- Sabe, você não precisa se cobrar assim, não é normal- ainda querendo responder mal criadamente, pois sua mente já organizava insultos dignos de congratulações, a garota presou a educação que lhe foi dada, e apenas aquiesceu como se concordasse, e voltou pra sua caverna.

A menina outra vez se isolou na caverna, onde tudo era só dela e como deveria ser. As paredes ainda pulsavam, ainda estremeciam.

Ela sabia que errar era humano, sabia que muitas coisas do mundo estavam além de seu controle. Ela entendia isso. Mas o que ela tinha domínio, e sabia que podia ser a melhor, pois aquilo era algo que só dependia dela, se esforçava ao máximo pra conseguir ser imbatível. E quando fracassava, ah, era sua ruína. Ela não suportava fracassar em algo que ela podia, e sabia como, controlar. Sentia-se indigna, e quase sempre desistia após falhar.
Porém o que não podia exercer controle, ela apenas se mantinha imparcial, pois não era algo que dependia dela diretamente, e mesmo que se esforçasse, não haveria resultado. Desde muito cedo aprendeu que há coisas na vida que estão alem do nosso desejo e controle, e nessas situações ela simplesmente, sentava e esperava acontecer. Enquanto os outros perdem o autocontrole sobre os sentimentos, ela não sentia nada, ela só esperava passar o momento ruim, porque tudo passa. Sempre passa.

Outra voz invadiu a calmaria da caverna, como se fosse a dona de toda a verdade. Como se soubesse o que é melhor pra ela.

- Você deveria arrumar um namorado... pare de só se preocupar com escrever e estudar. Isso não é saudável -disse a mulher. A garota a olhou e simplesmente saiu de perto sem responder a questão.
E outra voz.
-Você já está velha, tem que namorar, já já a idade de casar chega, e você está ai a ver navios. Quer ficar pra titia?-disse a voz petulante
E então mais outra.
-Mulher nasceu pra ser mãe, como você pode não querer ter filhos?
E outra.
-Que absurdo! Você não pode querer morar sozinha. Não pode sair da casa dos seus pais tão jovem e se enfiar em um buraco sem ninguém. Você nem é casada, ora essa. O que os outros vão pensar?
E outra a seguir.
-Hmmmm... que delícia, já pode casar.

A menina outra vez se isolou na caverna, onde tudo era só dela e como deveria ser. As paredes ainda pulsavam, ainda estremeciam.

Ela sempre foi diferente. Ela nunca teve só um talento. Na época de escolher uma carreira para seguir, quando atingiu a idade determinante, não sabia o que queria fazer. Enquanto todos os amigos de colégio tinham certeza de quem queriam ser dali a dez anos, ela não sabia. Ela estava perdida, pois queria ser tudo. Ela não queria ser rotulada por uma coisa ou outra, ela queria o melhor de todas elas embaladas em um kit de felicidade plena. Ela não queria ser julgada por ter tantas aspirações. Tanto que nunca compartilhou seus sonhos, até houve períodos que dizia que não possuía nenhum. Pois sabia que colocariam duvidas e empecilhos naquilo que ela já tinha certeza. Ela sabia, podia sentir em seus ossos que a ela era reservada a grandeza.
Ela almejava mais do que um "bom" casamento conveniente e filhos mal educados. Pra ela isso fazia apenas parte da vida. Pra ela o real objetivo da vida, é você se tornar alguém cada vez melhor e tornar um mundo um lugar melhor, o resto é só consequência , vem naturalmente. Ela tinha planos e projetos que não cabiam na mente pequena dessa gente. Ela queria ser dona do próprio nariz e mudar realidades. Ela não queria apenas ser mamãe e dona de casa, rainha da verdade. Ela queria outras verdades e aprender com elas. Ela queria ouvir histórias diferentes e poder conta-las em páginas para o mundo. Ela queria mostrar, que tudo bem ser bom num mundo onde todos se corrompem pelo mal. Tudo bem cair e levantar. Ela não queria ser egoísta, e não presar pelo mundo que lhe foi dado de bom grado. Ela não queria ser Deus, ela queria levar o amor que ele a ensinou a dar.
Dentro da sua caverna há uma lareira cujo o fogo é alimentado por atitudes , dela ou dos outros , que seja. Muitas vezes se transforma em incêndio se inflamando pela fusão de suas paredes glaciais com o fogo escaldante e pungente. Mas o fogo sempre retorna pra lareira e nunca danifica a caverna. Essa que ela se esconde do mundo. Onde ela pode ser ela. Mesmo sendo muito de exatas e sabendo que coração só bombeia sangue. Ela ainda construiu uma caverna em seu coração pulsante.

-Mari Cassimiro (MillaCasery)

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