Quatro (Evangeline)

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A pequena recepção que guardava as escadas era até aconchegante, não havia notado quando passei por ela, mais cedo, indo me instalar nos dormitórios. Havia dois sofás de couro bege com estampa floral, bem gastos e uma mesinha de centro com um jarro de porcelana azul cheio com flores artificiais. Pensei em como seria bom matar um tempo ali sozinha, de preferência. Não era a sala dos sonhos de ninguém, mas era suficientemente agradável.

O dormitório pareceu frio e sem vida, do mesmo modo que pareceu hoje de manhã. Ainda que neste momento ele estivesse cheio, com as quatro habitantes do lugar, era estranho. Sentia-me estranhamente deslocada. Faltava um quê de conforto no ambiente.

Novamente, a saudade de casa me atacou.

- Olha que bacana! Estamos no mesmo quarto, Eva! – disse Joan.

- Isso é ótimo! – principalmente porque eu não precisaria ficar num quarto só com desconhecidas, pensei. – E a Carol e a Cristal?

- Estão no quarto ao lado. Uma pena... – lamentou.

Sentei-me na cama que foi designada para mim e alisei o lençol azul, pensando na minha própria cama, tão distante na minha ex-casa. Pensei na colcha de retalhos, tão quente em comparação com esse pano frio e sem vida. Suspirei.

- Não é tão ruim assim. – Joan afagou meu ombro. Olhei para ela, também com olhos tristes.

- Onde tomo banho? – perguntei.

- Nós quatro dividimos o banheiro. Tudo funciona por onde de chegada. E nesse momento você é a última da fila. – ela sorriu.

Revirei a mala que havia trazido e puxei minha camisola, – um blusão azul-marinho com rock'n'roll estampado de branco, em letras enormes e rebuscadas – minha escova de dentes e um par de pantufas do Taz, nada fora do comum naquele quarto. As outras garotas tinham coisas parecidas. Não que alguma delas tivesse uma camisola de rock, mas pantufas todas tinham.

- Seu armário é aquele ali. – apontou Joan para um par de portas embutidas próximas a janela. – Pode guardar suas coisas lá, vai demorar muito para esse banheiro ser desocupado. – ela se jogou em sua cama, no beliche ao lado do meu, de forma teatral.

Arrastei a mala para perto do guarda-roupa e abri as portas. Um forte cheiro de mofo e naftalina me atingiu. Em suma, havia alguns cabides com uniformes e alguns vazios, onde pendurei as poucas roupas que pude trazer; um pequeno espaço para colocar sapatos, bem embaixo, onde acrescentei minhas botas à coleção de sapatilhas pretas do Convento; duas gavetas em que dividi minhas roupas íntimas e meias e meus objetos de valor – não o tipo de valor que se paga em alguma coisa cara, e sim, o valor emocional – meu porta-joias, com algumas bijuterias, minha agenda de caveirinhas e meu cinto de spykes preferido, este último, só como recordação dos velhos tempos.

Assim que o banheiro foi desocupado, quase uma hora depois, pude tomar um banho bem demorado, já que não havia ninguém mais na fila. Remoí um pouco mais a saudade do meu quarto enquanto a água quente caía sobre meu corpo.

Vou sentir muito a falta da minha colcha esta noite. Aqui é tão frio. Por que você tinha que fazer isso comigo, mãe? Por quê? Eu nem estava me comportando mal...

Quando saí do banho – depois de chorar um pouco, confesso – me sentia melhor. As outras garotas já estavam ocupadas com seus próprios apetrechos eletrônicos: notebooks, smartphones, tablets. Peguei meu celular embaixo do travesseiro, onde o havia escondido enquanto desfazia a mala, e disquei o número conhecido. Após dois toques ela atendeu.

- Oi, Mari!

- Eva, como você está? – sua voz estava cheia de preocupação e uma música alta tocava ao fundo. Uma das nossas bandas favoritas, Ramones. – Abaixa isso aí, Tom! – ela gritou.

- Eu estou bem. Saudades de vocês. – disse com a voz embargada, mas prometi para mim mesma que não iria chorar.

- Também estamos com saudades de você. O Tom está te mandando um beijo.

- Beijo, gatinha! – ele gritou no fone. Ouvi Mari enxotando-o para longe.

Inconscientemente, me levantei da cama e fui até a janela, abri as cortinas amareladas e me deparei com o céu azul escuro pontuado por nuvens alaranjadas. Aquilo me encantou. A mistura harmônica de cores tão contrastantes.

- O que vocês fizeram hoje? – sussurrei.

- O de sempre: milkshake, Lanchonete do Snow, você sabe... – Mari disse como se isso não tivesse importância alguma. Eu também falaria assim no lugar dela, porque poderia ir até lá todos os dias. Porém, agora que estava confinada aqui, tudo era diferente. Todas as coisas que eu poderia fazer quando estava livre lá fora se tornaram de grande valor. – E você? O que fez? O que achou da escola nova?

- Aqui é estranho, mas conheci umas meninas legais. Temos aula o dia todo e não podemos usar o celular, é um porre. – Mari riu. – Tem um jardim legal também, você sabe, gosto de flores.

- É, eu sei. Você sempre foi doida com as roseiras da minha mãe. – a voz de Mari soou entediada – como sempre soava quando eu tocava em um assunto que não era de seu interesse.

- Somos obrigadas a assistir à missa todos os domingos de manhã. – comentei.

- O quê? Tá de brincadeira?

- Não, é sério.

- Eles não te acham muito satânica para assistir missas, não?

- Não. – suspirei. – Não posso usar minhas roupas aqui. – pensei nos cabelos verdes de Mari. – Tenho um uniforme de freira. – rimos.

- Tira uma foto e me manda. – pediu, ainda rindo.

- Jamais! Você vai mostrar pra todos os nossos amigos! – retruquei.

- Claro que não! Como você pôde pensar algo assim de mim? – ela fingiu falsidade. Rimos mais.

- Queria estar aí. – minha voz ganhou uma nota triste.

- Também queria que estivesse aqui.

As nuvens alaranjadas desapareciam no céu, conforme escurecia, dando espaço às estrelas e à noite sobre o Convento. Meu coração se apertou no peito e senti vontade de pular no vazio. Esse era apenas o fim de um único dia e já me sentia despedaçada.

- Ligo pra você assim que puder. Um beijo pra você e outro pro Tom.

- Não se esqueça da gente. Beijo.

Então ouvi o bip de fim da chamada.

O demônio no campanário [DEGUSTAÇÃO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora