Aurora Calibral

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Um rádio sobre uma estante ao lado de uma garrafa de whisky serve de apoio para a velha mosca mutante. Na prateleira com bebidas que estende-se pela parede rústica, um calendário do ano 2009 completamente ensebado exibe alguns dias riscados com o tradicional "X" vermelho, isso até o inicio do mês de junho, onde os dias estão circulados também em vermelho. É um calendário semestral.

A imagem de ilustração é a fotografia da casa do velho hacker em Sobaroba, uma casa grande de estilo colonial, com uma roda d'água. Um riacho que desemboca em uma enseada formando um lago pequeno, que por fim desemboca no mar. Ao redor da casa um pomar, e um velho farol de pedras em ruínas. Uma bela casa posteriormente profanada por canos metálicos, mangueiras e cabos de energia, ligados aos equipamentos que o velho hacker montou para ajudar os calibradores na hora final.

A velha mosca mutante sobrevoa até o balcão de madeira onde um homem jaz debruçado no balcão, parece dormir. Uma caixa registradora antiga, com fuligem e poeira, reflete a luz fraca do sol que entra pela vidraça trincada, no interior do salão um jovem parece dormir com a cabeça encostada na parede, à sua frente uma jovem caída ao chão. Não, não estão dormindo.

Dentro do salão havia pelo menos nove pessoas mortas, sem nenhuma marca de perfuração, e por incrível que pareça, os corpos ainda conservados. Sete anos depois, e tudo como antes. Tomamos café aqui, naquela manhã. O homem debruçado ao balcão perguntou-me a hora quando voltei do banheiro, antes que sequer olhasse para o relógio na parede, Vagrossi respondeu-lhe sem olhar, como era de seu costume, então o homem pediu uma dose do velho oito.

Lembro-me de quando o jovem e a moça entraram, o rapaz abriu a porta envidraçada cheia de cartazes para a moça entrar, os quatro homens que estavam vendo a partida de bilhar olharam para a moça e falaram alguns gracejos, o rapaz entrou, os homens pararam, um deles veio ao balcão, estendeu dinheiro para a Guria, pagando uma bebida para o casal.
Vagrossi tomou o chá de ervas desconfiado, a Guria , eu e Da Rocha tomamos o café amargo, nosso último juntos.

A mosca pousa no copo de velho oito do homem. Sua pele permanece intacta, nenhum sinal de putrefação, nenhum germe ou bactéria deu conta da nova bio-engenharia do novo milênio. Grande porcaria!

De que vale tanta evolução ao preço de tantas vidas? Lá fora nenhuma relva cresce, uma densa camada de poeira oculta o sol, uma neblina ácida envolve os restos da vida com a morte.

Passo pelo balcão, as bebidas continuam intactas. Sinto uma vontade imensa de tomar uma delas qualquer uma que fosse. Como tomar qualquer coisa, com essa máscara rudimentar? A única coisa que separa-me da morte certa é a máscara e o traje de contenção. Entro na cozinha do velho bar, as panelas torradas ainda sobre o fogão. Naquele dia a Guria veio para cá preparar algum alimento para nós, antes de partirmos para a Sobaroba.

No chão ainda há munição de suas armas, a Guria sempre foi a mais explosiva e agressiva entre nós. Quando o celular de Vagrossi tocou deixamos tudo para trás, a Guria saiu desta cozinha, com duas armas imensas na mão, Vagrossi e Da Rocha abriram a porta e pegaram o carro, colocamos as máscaras, infelizmente sabíamos o que aconteceria a seguir. A infinita paz. É como fora batizada a nova arma que acalma as pessoas, deixando-as serenas até dormirem um sono profundo e mortal.

Percorremos o vale que leva à Sobaroba, hoje um território hostil, morada de egoístas e amargurados desumanos. Não víamos sequer um palmo da estrada à frente, Vagrossi usava uma venda, para não errar o caminho, superstição dele. Dizia que cresceu nessa região, quando o vale não era habitado, e ainda existiam florestas; A noite era escura como breu e Vagrossi caminhava pela antiga trilha onde fizeram a estrada sem enxergar o caminho. Um ruído de motor foi aumentando progressivamente até passar do nosso lado, Vagrossi manteve o volante firme, nenhum desvio na estrada.

A Guria puxou os controle das armas, Da Rocha abasteceu com munições, o chão tremeu, o carro de guerra elevou-se do chão, Vagrossi permaneceu firme ao volante, três estrondos reverberou pelo vale, uma lufada de ar fez o carro quase capotar, rodamos quase um minuto sobre duas rodas, inclinados. Vagrossi antes de estabilizar arrancou a venda dos olhos enquanto a Guria ligou os jatos propulsores. O Velho carro elevou-se estrada acima, escapando da neblina e caindo em um despenhadeiro. Foi o estrondo que ouvimos, uma cratera abriu-se à nossa frente, os helicópteros da força de controle do governo nos perseguiam, atiravam contra nós. A Guria travou a mira e descarregou uma bela saraivada de balas de nosso canhão, abatendo os helicópteros. O carro tocou o barranco do despenhadeiro, Vagrossi era a própria fúria ao volante, derrapamos, rodopiamos e outra vez estávamos na estrada.

O som do canhão ciclíco dos atravessadores ecoava no horizonte, e vimos Sobaroba em chamas, pequenos aviões de bombardeio alvejando os calibradores na enseada. A primeira estação calibral já não mais existia.

A mosca mutante alça vôo do copo de whisky de volta à prateleira de bebidas.

Subo na pia e abro o alçapão que dá acesso ao sótão, vou precisar dormir antes de seguir viagem, será a primeira noite desde a prisão. O velho sótão exala um cheiro de tumba, ainda assim melhor do que a minha antiga cela. Apalpando no escuro, caminho até uma réstia de luz que vem de fora.

Quando chegamos em Sobaroba ainda havia conflito, meia dúzia de calibradores revidavam à artilharia dos atravessadores. A Guria fez o que melhor sabia fazer, atirou com as duas armas, as veias de seus braços ficaram visíveis. Em seu rosto não lia-se nenhuma emoção enquanto cavalgava à fúria, abatendo a artilharia dos atravessadores. Da Rocha conseguiu abater um bombardeiro antes de ser atingido por uma granada de pressão e voar nos ares, Vagrossi correu para pegá-lo, evitar a queda mas nem mesmo chegou a tocá-lo. Da Rocha leu pelo menos cinco diários que relatavam a guerra de Sobaroba, e em cada um deles a Granada o lançava ao ar.

Um bombardeiro aproximou-se em vôo rasante disparando com sua metralhadora, atingindo os calibradores e jogando-os nas águas do mar. Um disparo do canhão do carro de guerra pôs fim ao bombardeiro, Da Rocha aprendeu a fluir pelo espaço tempo sem usar as máquinas. Foi a última vez que vi à todos.

Encosto a cabeça na bolsa com minhas provisões. Sei que o sono não virá tão já, porque agora tenho uma questão que me aflige: O que eu fiz nesse dia? Porque não me lembro de ter disparado um único tiro? Porque não me lembro de ter falado com nenhum dos três ?

Talvez a prisão tenha afetado as minhas memórias, ou as viagens espaço-temporais, o que é uma agonia sem fim. O que somos nós sem nossas memórias?

O Cerne do TempoWhere stories live. Discover now