Capítulo 32

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Descamba o sol.

Japi sai do mato e corre para a porta da cabana.

Iracema, sentada com o filho no colo, banha-se nos raios do sol e sente o frio arrepiar-lhe o corpo.

Vendo o animal, fiel mensageiro do esposo, a esperança reanima seu coração; quer erguer-se para ir ao encontro de seu guerreiro e senhor, mas os membros débeis se recusam à sua vontade.

Caiu desfalecida contra o esteio. Japi lambia-lhe a mão fria e pulava travesso para fazer sorrir a criança, soltando uns doces latidos de prazer.

Por vezes, afastava-se para correr até a orla da mata e latir chamando o senhor; logo tornava à cabana para festejar a mãe e o filho.

Por esse tempo pisava Martim os campos amarelos do Tauape; seu irmão Poti, o inseparável, caminhava a seu lado.

Oito luas havia que ele deixara as praias de Jacarecanga.
Vencidos os guaraciabas na baía dos papagaios, o guerreiro cristão quis partir para as margens do Mearim, onde habitava o bárbaro aliado dos tupinambás.
Poti e seus guerreiros o acompanharam.

Depois que transpuseram o braço corrente do mar que vem da serra de Tauatinga e banha as várzeas onde se pesca o piau, viram enfim as praias do Mearim e a velha taba do bárbaro tapuia.

A raça de cabelos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos tupinambás; crescia o número dos guerreiros brancos, que já tinham levantado na ilha a grande itaoca para despedir o raio.

Quando Martim viu o que desejava, tornou aos campos da Porangaba, que ele agora trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoripe; já lhe bafeja o rosto o sopro vivo das vagas do oceano.
Quanto mais seu passo o aproxima da cabana, mais lento se torna e pesado.
Tem medo de chegar; e sente que sua alma vai sofrer, quando os olhos tristes e magoados da esposa entrarem nela.

Há muito que a palavra desertou seu lábio seco; o amigo respeita este silêncio, que ele bem entende.
É o silêncio do rio quando passa nos lugares profundos e sombrios.
Tanto que os dois guerreiros tocaram as margens do rio, ouviram o latir do cão a chamá-los e o grito da ará, que se lamentava.

Estavam mui próximos à cabana, apenas oculta por uma língua de mato.

O cristão parou calcando a mão no peito para sofrear o coração, que saltava como o poraquê.

- O latido de Japi é de alegria, disse o chefe.

- Porque chegou; mas a voz da jandaia é de tristeza. Achará o guerreiro ausente a paz no seio da esposa solitária, ou terá a saudade matado em suas entranhas o fruto do amor?

O cristão moveu o passo vacilante.
De repente, entre os ramos das árvores, seus olhos viram sentada, à porta da cabana, Iracema com o filho no regaço, e o cão a brincar.

Seu coração o arrojou de um ímpeto e a alma lhe estalou nos lábios:

- Iracema!...

A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande pôde erguer o filho nos braços e apresentá-lo ao pai, que o olhava extático em seu amor.

- Recebe o filho de teu sangue. Era tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!

Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica, se lhe arrancam o bulbo.

O esposo viu então como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá.

Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim.
O terno esposo, em quem o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera.

- Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amavas. Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos. O doce lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhos baços.

Poti amparou o irmão na grande dor.

Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é precioso na desventura: é como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratã, quando o cupim lhe broca o âmago.

O camucim que recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoríferas, foi enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa.

A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente:

- Iracema! Desde então os guerreiros pitiguaras que passavam perto da cabana abandonada e ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, afastavam-se com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia.

E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio.

Iracema (JOSÉ DE ALENCAR)Where stories live. Discover now