Capítulo 10

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Na cabana silenciosa medita o velho Pajé.
Iracema está apoiada no tronco rudo, que serve de esteio.
Os grandes olhos negros, fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto, estão naqueles olhares longos e trêmulos enfiando e desfiando os aljôfares das lágrimas, que rorejam as faces.
A ará, pousada no jirau fronteiro, alonga para sua formosa senhora os verdes tristes olhos.
Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos tabajaras, Iracema a esqueceu.
Os róseos lábios da virgem não se abriram mais para que ela colhesse entre eles a polpa da fruta ou a papa do milho verde; nem a doce mão a afagara uma só vez, alisando a dourada penugem da cabeça.
Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não se voltava para ela, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga, que dantes tão suave era ao seu coração.
Triste dela!
A gente tupi a chamava jandaia, porque, sempre alegre, estrugia os campos com seu canto fremente.
Mas agora, triste e muda, desdenhada de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o feio urutau que somente sabe gemer.
O sol remontou a umbria das serras; seus raios douravam apenas o viso das eminências. A surdina merencória da tarde, precedendo o silêncio da noite, começava de velar os crebros rumores do campo. Uma ave noturna, talvez iludida com a sombra mais espessa do bosque, desatou o estrídulo.

O velho ergueu a fronte calva:

- Foi o canto da inhuma que acordou o ouvido de Araquém? disse ele admirado.

A virgem estremecera e, já fora da cabana, voltou-se para responder à pergunta do Pajé:

- É o grito de guerra do guerreiro Caubi!

Quando o segundo pio da inhuma ressoou, Iracema corria na mata como a corça perseguida pelo caçador.
Só respirou chegando à campina, que recortava o bosque como um grande lago.
Quem seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranquilamente sentado em uma sapopema, olhando o que passava ali. Contra, cem guerreiros tabajaras, com Irapuã à frente, formavam arco.
O bravo Caubi os afrontava a todos, com o olhar cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mão robusta.

O chefe exigira a entrega do estrangeiro, e o guia respondera simplesmente:

- Matai Caubi antes.
A filha do Pajé passara como uma flecha; ei-la diante de Martim, opondo também seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros.
Irapuã soltou o bramido da onça atacada na furna.

- Filha do Pajé, disse Caubi em voz baixa, conduz o estrangeiro à cabana; só Araquém pode salvá-lo.

Iracema voltou-se para o guerreiro branco:

- Vem! Ele ficou imóvel.

- Se tu não vens, disse a virgem, Iracema morrerá contigo.

Martim ergueu-se; mas longe de seguir a virgem, caminhou direito a Irapuã.
A sua espada flamejou no ar.

- Os guerreiros de meu sangue, chefe, jamais recusaram combate.
Se aquele que tu vês não foi o primeiro a provocá-lo, é porque seus pais lhe ensinaram a não derramar sangue na terra hospedeira.
O chefe tabajara rugiu de alegria; sua mão possante brandiu o tacape.
Mas os dois campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando fendiam o primeiro golpe, já Caubi e Iracema estavam entre eles.
A filha de Araquém debalde rogava ao cristão, debalde o cingia nos braços, buscando arrancá-lo ao combate.
De seu lado Caubi em vão provocava Irapuã para atrair a si a raiva do chefe.
A um gesto de Irapuã, os guerreiros afastaram os dois irmãos; o combate prosseguiu. De repente o rouco som da inúbia reboou pela mata; os filhos da serra estremeceram reconhecendo o estrídulo do búzio guerreiro dos pitiguaras, senhores das praias ensombradas de coqueiros.
O eco vinha da grande taba, que o inimigo talvez assaltava já.
Os guerreiros precipitaram, levando por diante o chefe.
Com o estrangeiro só ficou a filha de Araquém.

Iracema (JOSÉ DE ALENCAR)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora