Capítulo 21

1.3K 38 0
                                    

Já descia o sol das alturas do céu.

Chegam os viajantes à foz do rio onde se criam em grande abundância as saborosas traíras; suas praias são povoadas pela tribo dos pescadores, da grande nação dos pitiguaras.
Eles receberam os estrangeiros com a hospitalidade generosa que era uma lei de sua religião, e Poti com o respeito que merecia tão grande guerreiro, irmão de Jacaúna, maior chefe da forte gente pitiguara.
Para repousar os viajantes e acompanhá-los na despedida, o chefe da tribo tomou Poti, Martim e Iracema na jangada e, abrindo a vela à brisa, levou-os até muito longe na costa.
Os pescadores em suas jangadas seguiam o chefe e atroavam os ares com o canto de saudade e os múrmuros do uraçá, que imita os soluços do vento.
Além da barra da Piroquara, estava mais entrada para as serras a tribo dos caçadores.
Eles ocupavam as margens do Soipé, cobertas de matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacus abundavam. Assim os habitantes dessas margens lhes deram o nome de país da caça.
O chefe dos caçadores, Jaguaraçu, tinha sua cabana à beira do lago que forma o rio perto do mar.
Aí acharam os viajantes o mesmo agasalho que haviam recebido dos pescadores.
Depois que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o rio Taíba em cujas margens vagavam bandos de porcos-do-mato; mais longe, corria o Cauípe, onde se fabricava excelente vinho de caju.
No outro sol viram um lindo rio que surdia no mar cavando uma bacia na rocha viva.
Além assomava no horizonte um alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar.
O cabo sobranceiro parece a cabeça calva do condor, esperando ali a borrasca, que vem dos confins do oceano.

- Poti conhece o grande morro das areias? perguntou o cristão.

- Poti conhece toda a terra que tem os pitiguaras desde as margens do grande rio que forma um braço do mar, até à margem do rio onde habita o jaguar.
Ele já esteve no alto do Mocoripe; e de lá viu correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus inimigos, que estão no Mearim.

- Por que chamas tu Mocoripe ao grande morro das areias?

- O pescador da praia, que vai na jangada lá onde voa a ati, fica triste longe da terra e de sua cabana, em que dormem os filhos de seu sangue.
Quando ele torna e seus olhos primeiro avistam o morro das areias, o prazer volta a seu coração. Por isso ele diz que o morro das areias dá alegria.

- O pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como ele, vendo o monte das areias. Martim subiu com Poti ao cimo do Mocoripe.
Iracema, seguindo com os olhos o esposo, divagava como a jaçanã em torno do lindo seio que ali fez a terra para receber o mar.
De passagem ela colhia os doces cajus, que aplacam a sede nos guerreiros, e apanhava conchas mimosas para ornar seu colo.
Os viajantes estiveram em Mocoripe três sóis.
Depois Martim levou seus passos além.
A esposa e o amigo tornaram à embocadura de um rio, cujas margens eram alagadas e cobertas de mangue.
O mar, entrando por ele, formava uma bacia de água cristalina, e cavada na pedra como um camucim.
O guerreiro cristão, percorrendo essa paragem, começou de cismar.
Até ali ele caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso: não tinha outra intenção mais que afastar-se das tabas dos pitiguaras para arrancar a tristeza do coração de Iracema.
O cristão sabia por experiência que a viagem acalenta a saudade, porque a alma dorme enquanto o corpo caminha.
Agora, sentado na praia, pensava.
Veio Poti:

- O guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para receber seu pensamento.

- Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça.
Nestas águas as grandes igaras que vêm de longes terras, se esconderiam do vento e do mar; daqui elas iriam ao Mearim destruir os brancos tapuias, aliados dos tabajaras, inimigos de tua nação.

O chefe pitiguara meditou e respondeu:

- Vai buscar teus guerreiros. Poti plantará sua taba junto da mairi de seu irmão.
Aproximava-se Iracema.
O cristão com um gesto ordenou silêncio ao chefe pitiguara.

- A voz do esposo se cala e seus olhos se baixam quando chega Iracema. Queres tu que ela se afaste?

- Quer teu esposo que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos penetrem mais dentro de tua alma.
A formosa selvagem desfez-se em risos como se desfaz a flor do fruto que desponta, e foi debruçar-se na espádua do guerreiro.

- Iracema te escuta.

- Estes campos são alegres e ainda mais serão quando Iracema neles habitar. Que diz teu coração?

- O coração da esposa está sempre alegre junto de seu guerreiro e senhor.
Seguindo pela margem do rio, o cristão escolheu um lugar para levantar a cabana.
Poti cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Araquém ligava os leques da palmeira para vestir o teto e as paredes; Martim cavou a terra e fabricou a porta das fasquias da taquara.
Quando veio a noite, os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana e o amigo, no copiar que olhava para o nascente.

Iracema (JOSÉ DE ALENCAR)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora