Capítulo VI - A Colombiana de Botero

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O Sr. Gesmóv Pavlóv descendente de polonês e a Sra. Annatévka Katienka, nascida na Ucrânia e filha de judeus abastados, viviam com seus filhos como podiam na velha casa daquela aldeia simplória.

Jeffernikóv um dos filhos do casal, tinha lá os seus motivos para odiar severamente seu pai. Apesar das vagas lembranças de sua difícil e dolorosa infância, algumas cenas ainda se mostravam vivas em sua memória e as martelavam com sentimento de repulsa e crueldade.

Seu pai Gesmóv Pavlóv era um sujeito arbitrário, cético desde a infância, fora educado no meio de Padres e Monges, passando quase toda a adolescência contra a sua vontade em um convento Católico de uma pequena vila de pescadores localizado as margens do rio Vístula.

Mais tarde estudou na Universidade Tecnológica de Varsóvia servindo no tiro de guerra, seus descendentes eram de origem polonesa e lutaram perdendo suas vidas na tentativa de parar os comandados de Hitler.

Todos os seus irmãos foram mortos em campo de batalha, somente ele e Aleksey escapara com vida. Ainda se vira forçado a testemunhar as barbáries dos soldados alemães que violentaram e mataram duas de suas irmãs mais novas.

Fugiu para a Ucrânia com o sangue nos olhos depois de matar a golpes de machado um importante oficial de Führer.

Casou-se rapidamente com Annatévka, uma ucraniana também refugiada e sobrevivente de Bergen-Belsen, um dos mais importantes campos de concentração da Alemanha Nazista.

Gesmóv Pavlóv tinha apenas oito anos quando sentira na pele o ardente fogo que matara seus pais carbonizados. Haviam sido vítimas de um incêndio casual, causado por uma bituca acesa de um cigarro de palha, que seu pai deixou cair na cama enquanto dormia.

Mas não era isso o que mais incomodava Jeffernikóv. Seu pai espancava frequentemente a sua mãe e como se não bastasse abusava sexualmente das próprias filhas; Tatienka de nove anos e Gecilovra de apenas seis.

A vida já não era fácil para Jeffernikóv e ainda tinha de suportar a miséria e a fome, pois seu pai vivia explorando sua mãe Anna, tomando-lhe o pouco dinheiro que ganhava trabalhando no serviço da agricultura, empregando-o no vício do cigarro e da bebida.

Era muito pra cabeça daquele menino que já se via na tentativa de eliminar a existência do pai na terra dos viventes; a única maneira de encontrar descanso para si e para as mulheres daquela casa.

Deitava todas as noites em seu embolorado travesseiro que exalava um odor fétido por conta dos incontáveis ácaros e toda sorte de impurezas que infestavam aquela casa.

Dormiam todos no mesmo compartimento, mobiliados por uma cama de casal que ficava no epicentro do quarto encostado na parede, sustentando à cima da cabeceira um enorme crucifixo de madeira talhada.

Aos olhares do Cristo Crucificado, as meninas dormiam juntas na cama que ficava abaixo da janela, enquanto Jeffernikóv ficava com a outra cama encostada com a porta da sala.

No mais completavam a mobília um guarda-roupa velho de três portas sem espelhos, uma camiseira envelhecida de mogno feita da própria árvore da família de meliáceos, uma rádio vitrola antiga e na parede um quadro pintado a óleo sobre tela pelo artista colombiano Fernando Botero; pintura exacerbada na qual relatava em sua real insignificância, a sensualidade bizarra de uma mulher nua e gorda.

Jeffernikóv não conseguira dormir por causa dos gemidos que vinham da cama de suas irmãs e dos sussurros ressentidos que soavam do timbre embargado de sua mãe Annatévka.

Naquela noite, seu pai Gesmóv Pavlóv havia bebido demasiadamente e sentia seu corpo cansado, como quem tivera levado uma surra de chicote, deitou-se fixando bem seus olhos naquele inusitado e intrigante quadro.

Beneficiado pela metade de luz que saltava do abajur de cima da cômoda, Botero em sua ousadia, revelava com certa timidez e economia de luz, a prepotência de sua soberba obra, tão egocêntrica e ao mesmo tempo autoritária.

Sentiu medo. Algo mais forte do que ele o compenetrara; sentira não só o arrepio na sua pele, mas, a sensação de abandono de sua inquieta alma.

Examinou atentamente aquela figura abominável a começar pela face rechonchuda, olhos grandes e negros, lábios curtos e escarnecidos, e foi descendo indecentemente, até fixar os bicos modelado daqueles grandes seios.

Tentou esconder o rosto em um enorme sentimento de vergonha, porém, toda aquela concupiscência generalizada era mais forte do que ele.

Gesmóv Pavlóv delirava de febre, todo o seu corpo queimava em seu estado de desespero e subterfúgio.

Abandonado subitamente pelos anjos por causa do seu pecado, se vira nas mãos de um demônio enlouquecido que escarnecia impiedosamente os desejos e sentidos de sua carne.

Obcecado pelas curvas voluptuosas daquela criatura quadrilateral, procurou enxergar além daqueles volumosos pelos pubianos. O que será que havia se escondido bem ali naquela entranha subterrânea, além da vulva e dos lábios libidinosos?

Naquele momento ele ficou perplexo, com medo de levantar o seu rosto. Não tinha coragem de encarar a face da mulher adúltera e olhá-la diretamente nos olhos. Quando desafiou os seus instintos masculinos, lembrou-se de que era homem, encorajou-se pelo ódio que sentira e encarou de vez a Colombiana de Botero.

Diante de um colapso casual de sua mente turva, fez terrível confusão. Sua imaginação demoníaca, ora lhe mostrava a face flagelada de sua filha Gecilovra suplicando-lhe por piedade; ora lhe revelava Tatienka estendendo as mãos na tentativa de limpar o sangue que escorria em suas coxas, não por conta da menstruação, mas do hímen que fora rompido por uma sombra que traduzia bem o que acontecia do outro lado do quarto.

Gesmóv suou frio e por conta do delírio que o atormentava, não se achava mais capaz de distinguir o fictício da realidade. Jurou para si mesmo que se levantasse vivo, iria pôr fim à sua própria vida.

Gesmóv adormeceu em meio ao cansaço e a tortura psicológica que o castigara até o início da madrugada. Lembrou-se de quando retornara para a sua casa ainda pela madrugada, com pompa de um déspota autoritário, se despiu da roupa suja que usava e deitou-se em sua cama sem tomar um banho e sem fazer se quer uma oração, como de costume antes de pegar no sono, acendera um cigarro de palha para relaxar.

Adormecera repentinamente com ele queimando entre os dedos, sobre o olhar malicioso e inquieto de "The Dolorosa", a mefistofélica colombiana, preferida da coleção de Botero. Ela cobrira a sua vergonha antes mesmo de lançar as suas chamas na pervertida e insaciada cidade de Sodoma e Gomorra.

Aleksey, o irmão mais velho de Gesmóv Pavlóv, trabalhava em um velho armazém na aldeia da cidade e de vez em quando passava na casa do irmão para tomar um café e contar as boas novas...

Naquela manhã de quarta-feira, Aleksey resolveu visitar o irmão e foi terrivelmente surpreendido com uma visão estarrecedora.

O quarto da família de Gesmóv Pavlóv havia se propagado em chamas, e havia reduzido toda a sua família em cinzas. O fato de Jeffernikóv dormir na cama perto da porta da sala facilitou a entrada de Aleksey que acabou salvando o sobrinho.

Não houve tempo para mais nada. O fogo havia consumido tudo e não se sabe como Jeffernikóv e a Colombiana de Botero haviam se safado das ardentes chamas.

Sua mãe Annatévka e suas irmãs, Tatienka e Gecilovra morreram carbonizados e parece que nada sentiram. Ambos estavam fadados ao mesmo destino dos pais de Aleksey e Gesmóv; Jeffernikóv ficara na casa de seu tio que houvera a pouco perdido a esposa, mas, ainda lhe restava um único filho (Andrey).

A sarcásticacolombiana por sua vez, entrara nua e sorrindo, e havia conquistado um lugar dedestaque na parede da sala de estar da casa de Aleksei. Parece que a pintura a óleode Fernando Botero pressentira o seu fim.



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