Capítulo II - A Família

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Gesmóv Pavlóv tinha pouco mais de cinquenta anos, mas aparentava ter bem mais a idade por conta dos sulcos impregnados na pele do seu rosto.

Quando ele sorria, notava-se que em seus movimentos faciais as rugas eram de envelhecimento precoce e não propriamente de expressão natural; portanto, o tempo que nunca perdoa ninguém, mostrava-se flagrante, revelando que não havia nenhum sinal de piedade em seu caráter; sua aparência hirsuta e seus cabelos esbranquiçados traduziam bem os desgraçados anos que vivera até ali.

Annatévka não ficava para trás; cinco anos mais nova do que seu marido, aparentava em seu rosto severo e ucraniano um misto de tristeza e desespero. Não carregava em sua tez somente as cicatrizes do implacável tempo, mas também as marcas da violência familiar, impostas pelo descontrole emocional de seu machista, perverso e traiçoeiro companheiro.

Annatévka não tivera liberdade de escolha. Seus pais a abandonaram ainda criança e ela nascera em uma época em que o holocausto aflorava ardentemente em sua pele de menina.

Fora covardemente violentada por oficiais da Gestapo "Polícia Secreta Prussiana, a serviço do exército de Adolf Hitler".

Escapara dos campos de extermínio da Polônia dominada pelas garras de Adolf Eichmann, em contra partida, caíra nas implacáveis mãos do destino que a vinha lhe matando aos poucos.

Talvez tivesse sido melhor se Anna houvesse encontrado seu veredicto nas câmaras de gazes, ou quem sabe tivesse sido contada na lista de fuzilamento dos soldados nazistas, morreria jovem e não se renderia aos caprichos do tempo e a vergonha da subserviência de um marido déspota e tirano.

Annatévka ainda continua exilada em sua triste e insignificante existência, porém a única diferença é que ao lado de seu autoritário Führer, vê a morte passar lentamente por entre seus olhos, cada vez mais doente e mais velha, vítima de uma decrepitude precoce.

Annatévka aposentou-se por diagnóstico de esquizofrenia. Enlouquecera vendo suas filhas sendo tratadas como objeto perante o cinismo do marido, agora ela vende suas iguarias em frente à estação ferroviária da aldeia, na esperança de oferecer maior dignidade a seus filhos.

Gesmóv Pavlóv a muito deixara o batente, antes fazia seus bicos nos serviços de alvenaria da aldeia, agora encostara de vez alegando estar muito doente para continuar trabalhando.

Suponho que deva falar agora de outro de seus dois filhos homens, curiosamente tão diferentes, não menos descompromissados em relação à situação da família.

Jeffernikóv Pavlóv, cujo nome significa "O herdeiro de Deus" era o caçula dos homens; rapaz bonito e ajuizado pendera para o cristianismo, e embora desfrutasse de seus quase dezessete anos, já ostentava namorar uma das filhas da Igreja na qual frequentava.

Mas não se iluda com a aparente responsabilidade do menino, se tratando da casa, o pai era o grande ditador e como tal ditava as regras da família, e coitado de quem não rezasse na sua cartilha.

Jeffernikóv começou cantando no coral dos cultos matinais que aconteciam aos domingos, porém com o passar do tempo, fora intitulado Pastor, e no auge da sua puberdade, pregava orientando às suas ovelhas a fugirem da ira futura, conduzindo-as ao árduo caminho da salvação.

Do outro lado do paraíso num inferno distante, Caim guardava as suas mágoas dentre as grades de uma cela obscura, falo de Dimytro Pavlóv, o filho mais velho de Gesmóv Pavlóv.

Há quem diga que o destino armara uma emboscada para ele, coisas de mulheres e amores mal resolvidos; isso vem desde o início da humanidade, não que Dmytro não fosse um bom moço, ajudava a mãe trabalhando duro no armazém de Borys, entrando as seis da manhã e saindo perto das oito da noite. Aos fins de semana, tocava a carroça com a ajuda de Tatienka em busca das coisas que a mãe vendia para o sustento da família.

Tudo caminhava bem para Dmytro até conhecer Oleksandra, a perdição de sua vida. Brigou com os pais dela que eram contra o relacionamento da filha; lutou contra tudo e contra todos, desonrou a moça e foi parar na cadeia sob falsa acusação de estupro. Amigos e inimigos da família na aldeia garantem que fora trairagem de Oleksandra.

Até hoje, Dmytro escreve cartas para sua mãe Anna, falando que sente saudades do tempero na comida e das roupas lavadas e passadas. Não quer ouvir falar do pai nem por decreto e chega a afirmar na carta que Deus sabe o que faz, que se, por acaso ganhasse a liberdade, escreve forçando a tinta da caneta, Gesmóv (não gosta de chama-lo de pai) já teria partido desta para outra bem melhor.

Não se esquecera de Thor, um gato rajado, seu pet preferido, que ganhara de Ivralova sua tia madrinha, na carta, Dmytro garante à mãe que o bichinho fora envenenado pelo pai, e não há quem pudesse tirar isso de sua cabeça.

Quando ficou sabendo da gatinha Mamitka que sua irmã Gecilovra havia ganhado, alertou a mãe sobre o perigo dos bolinhos de carne moída que o pai preparava durante as refeições.

Dmytro nunca engolira as idas e vindas do pai, que religiosamente passava no armazém à tardinha para comprar a carne bovina.

Suspeitava do velho que nunca enjoava da mesma iguaria; bolinhos de chuva para o café da tarde e bolinhos bem temperados de carne moída passados na farinha de trigo, alho, cebola e salsinha.

Enquanto isso desapareciam os gatos da casa e de toda a vizinhança da aldeia.

Annatévka nunca acreditara em seu filho Dmytro, pensava; "Se fosse bom não estaria na cadeia".

Na verdade, Anna não tinha coragem de enfrentar Gesmóv; morria de medo de acabar os seus dias sozinha. Por que os filhos? Pensava ela com ar de desgosto; os filhos são criados para o mundo.

Até que para uma mulher no auge severo de seus transtornos psíquicos (esquizofrenia), Annatévka apresentava um quadro de lucidez satisfatório, então achou por melhor não receber mais as cartas de seu filho Dmytro, não precisava mais delas.

Agora quem a ajudava a buscar as iguarias no armazém era seu filho preferido, Jeffernikóv, este sim xodó da mamãe e saco de pancadas do Sr. Pavlóv, só para variar.

Tatienka Pavlóv, era uma menina muito magra, chegava a ser anêmica, faltava-lhe carne em todos os ossos do corpo. Embora nem tudo estivesse perdido em seu lindo rosto, seus olhos vivos esverdeados e sua boca carnuda, prometia revelar ao mundo, Nefertiti; a perfeita Rainha do Egito contemporâneo. Era praticamente uma puritana aos onze anos, ainda brincava de boneca e acreditava que um dia pudesse ser modelo, igualzinha a belíssima Veruschka Von Lehndorff...

Tatienka era muito alegre, quando sorria mostrava seus pequeninos dentes serrados, assanhada gostava de dançar exibindo seu pequeno corpo instigante e ao mesmo tempo inocente.

Tivera uma infância difícil, por isso era rotulada pela mãe como uma esfomeada e atentada. Chorava de fome quando era pequenina e mamara no peito até quase os cinco anos.

Dizem as más línguas que Tatienka perdera a virgindade cedo e que o Sr. Pavlóv tinha culpa no cartório. Mesmo com tal prognóstico, ninguém ousava acusar o maldito velho por falta de provas.

Gecilovra acabara de completar sete anos, e ainda não havia sido matriculada na escola; por conta disso, não sabia nem ler nem escrever.

Seus pais carregavam um rótulo de família de ignorantes, sem escrúpulos e sem o menor perfil de etiqueta.

Gecilovra era um anjo expulso do paraíso, à mercê de um demônio a queridinha do papai, estava em constante perigo e não podia se quer ter a consciência completa disso.


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