Capítulo 7 - Matheus

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Santa Fé, Minas Gerais. - 9 de Fevereiro de 2005, 04:12.

Toda a cidade estava adormecida. A brisa silenciosa da madrugada enevoava o asfalto sujo e os cachorros de rua circulavam por entre as latas de lixo repletas de restos de comida e garrafas de vidro vazias, produtos do carnaval. Aquela quarta-feira de cinzas fazia jus ao seu nome e significado, porque nunca um lugar me pareceu tão morto, quando horas antes a música era alta e blocos de pessoas dançavam com suas máscaras e risadas, desprendidos de qualquer manifestação de sentimento que não fosse puro êxtase. Aquele foi o último carnaval que passei ao lado dela.

Sobre um ensinamento da alegria tola:

Eu tinha treze anos.

Aprendi que no carnaval todos paravam de pensar em problemas e ameaças.

E eram absolutamente felizes.

Pensei em me isentar de problemas e ameaças nos outros 360 dias do ano.

Pensei que seria mais feliz.

Porque fingir que a ameaça não existia transformava meus instintos em frieza.

E entorpeci-me.

Deixei que a ameaça engolisse tudo ao meu redor.

Até minha vida.

Caminhei pela relva orvalhada e avistei o trailer lá na frente, sozinho na campina, envolto nas brumas do início da manhã. Percebi que meu dorso estava nu, e cruzei os braços. O frio penetrava meus poros e ardia por baixo da pele, como se fosse capaz de me queimar em chamas. A sensação era tão real, que não me permitia seguir sem tremular o corpo inteiro. Contudo, segui por entre as línguas da grama alta que roçavam em meus pés, sem cessar.

Aqui as lembranças se confundem.

A casa ficava mais longe, e eu corria, mas não era capaz de chegar. Comecei a ouvir aqueles gritos que me perseguiam desde sempre, desde nunca. Por mais que eu corresse o quanto meu corpo franzino permitia, era incapaz de chegar ao meu destino. Era sempre assim. E quando a porta se abria eu via o monstro de garras afiadas e olhos perversos sobre o corpo dela, sem vida. Sempre corria até ela e chacoalhava seus ombros. Eu implorava para que ela ficasse comigo, para que não me deixasse, porque eu já era sozinho demais, porque ela já era sozinha demais.

Sentia as lágrimas molharem meu nariz, e pedia a Deus para que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo. Levantava-me, fitava o monstro. Eu sentia a adrenalina, o ódio, a dor, a tristeza, o recente luto. A saudade póstuma que se aproximava e ameaçava perfurar meu coração. Era tarde. Dilacerado, eu avançava sobre ele, procurava armas como as dele para revidar a morte que ele me fez acolher. Esbravejava, mas sentia-me fraquejar. Via sempre os mesmos cacos de vidro choverem contra mim. Sentia o gosto salgado das lágrimas enquanto apunhalava seu coração como ele feriu o meu.

Sorvia o hálito bêbado de seu grito esganiçado e caía com seu peso morto sobre mim.

Santa Fé, Minas Gerais. - 20 de Julho de 2011, 06:13.

Acordei em um sobressalto e sentei-me na cama cobrindo o rosto com as mãos. Entre os dedos sentia o suor frio que escorria em minha testa e bochechas, e respirava profundamente. Havia alguns dias desde o último pesadelo, mas eu precisava admitir que eles se tornaram mais frequentes depois que cheguei à Santa Fé. Todas as vezes era a mesma cena da quarta-feira de cinzas, o dia em que fugi de casa, para nunca mais voltar. Naqueles dias eu pegava o celular e colocava um chip antigo, que eu só usava quando queria ligar para algum conhecido do passado. E só havia uma pessoa em minhas memórias que ainda estava viva.

Conexão Paris - Spin Off - Triângulo de 4 LadosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora