Capítulo 3 - Matheus

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Santa Fé, Minas Gerais. 19 de Junho de 2011, 19:03.

A substância cintilante da qual eram feitas as estrelas se aquietava e evanescia, à medida que o fulgor da lua cheia reverberava raios de nuances pálidas e desmistificava a escuridão da noite. Manchas leitosas da via láctea transcreviam caminhos infinitos nas trevas, para além da quietude do firmamento. Por entre algumas constelações esquecidas jaziam histórias sobre guerras, tragédias passionais, amores perdidos. Odes clássicas que tomavam um fôlego de vida todas as noites.

Era o que minha mãe dizia, quando íamos até a entrada do trailer no qual morávamos e sentávamos aos cuidados da cobertura etérea e distante do céu. Ela narrava registros épicos e fantásticos sobre estrelas que eram cavaleiros errantes, donzelas em perigo, seres mitológicos e casais que se obrigaram a viver separados por rios de constelações. Anos depois, já sem ela, descobri que menos da metade das histórias que ela contava existiu na mitologia histórica e, que as que existiam, eram diferentes dos relatos dela.

E ela sabia contar histórias.

Marau, Rio Grande do Sul. 19 de Junho de 1996, 21:51.

-Vem, Matheus. - Catarina Bianchi sussurrava. Os dedos frementes seguravam meus ombros raquíticos e me empurravam na direção de uma portinhola. - Rápido! - A ordem insegura era entoada em um arroubo de coragem que ela tentava repassar para mim. - Você se machucou? - Perguntou assim que pisamos na relva orvalhada da noite fria de inverno. Eu via lágrimas transbordarem suas pálpebras e rolarem pela pele pálida e maculada por manchas arroxeadas. Os olhos amendoados fitavam-me com uma tristeza embalada pelo medo.

-Estou bem, mamãe... - Minha voz esganiçada e aguda de criança saltou como um murmúrio.

-Que bom, meu amor. - Ela afagou meus cabelos claros e finos, desleixados pela falta de corte.

Depois de verificar se eu estava devidamente agasalhado, pediu-me para andar o mais rápido que eu pudesse, mesmo que sentisse frio, e para ter coragem, porque sabia que eu temia, um pouco, o escuro. Eu disse que a protegeria do frio, se precisasse, e que não sentia mais medo do escuro, porque ele já havia sido claro horas atrás. Ao ouvir-me, ela sorriu. Nós corremos. O ar frio e seco penetrava minhas narinas, permeava meus pulmões e os fazia doer. Depois de alguns minutos minhas pernas enrijeceram e eu me esforcei para manter o ritmo, mesmo com as fisgadas em determinados pontos do corpo.

Quando as ruas se tornaram mais povoadas, nossa corrida se tornou caminhada, e eu agradeci silenciosamente. Minha mãe esquadrinhava o lugar e parecia procurar por algo. Pressionava minha mão contra a sua e puxava-me sutilmente para mais perto dela. O frio que sentia não se comparava à fome que assolava meu estômago vazio, mas não reclamei, porque sabia que ela não tinha nenhum dinheiro consigo, e que não havia muitos vizinhos que cultivassem amizade com ela.

-Vamos entrar ali. Está vendo? - Ela apontou para uma lanchonete conhecida por ter o melhor sanduíche Xis-coração do bairro. Só de pensar no aroma de comida quente meu estômago contorceu-se.

-Vamos comer, mamãe?

-Claro que sim. Esqueceu que hoje é um dia especial? - O sorriso não combinava com o semblante cadavérico e tristonho. - Não? - Seu cenho franziu-se.

-Não... Que dia é hoje?

-Seu aniversário, filho. - A voz dela tornou-se aveludada e compreensiva, e eu fitei a lanchonete.

Todos os anos, naquela data, eu aumentava um ano na idade. Outras crianças gostavam de seus aniversários pelas festas com bolo, brigadeiro e cachorro-quente, com os amiguinhos de escola e com os presentes que ganhavam. Eu gostava do aniversário por apenas um motivo. Eu tinha consciência de que estava mais velho e logo ficaria mais forte, então poderia proteger minha mãe de meu padrasto, e esse era meu sonho. Envelhecer o suficiente para poder protegê-la.

Conexão Paris - Spin Off - Triângulo de 4 LadosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora