PRÓLOGO

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A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.

Carlos Drummond de Andrade

PRÓLOGO

SIM, TODOS SABIAM QUE EU ERA UM CANALHA. Veja bem: eu era, não sou mais - apesar de ainda sentir os resquícios do velho homem soprando sobre mim. No entanto, ela estava ali, bem na minha frente, me olhando fixamente e eu diria quase que... com pena. Seu olhar me atravessava, me incomodava, mas de um jeito bom. Eu havia acabado de tomar um fora colossal depois de meses reunindo forças para falar com uma menina - isso mesmo, ela era uma menina -, enquanto eu já era um homem de vinte e nove anos e sem nenhuma vergonha na cara. Uma menina que eu fiz sofrer tanto que hoje só a lembrança disso me faz sucumbir de vergonha. Sinto nojo de quem eu era, e sinto asco do que fiz com ela um dia. Por causa dessa paixão atrasada - depois que eu já a havia perdido -, fui ao fundo do poço envolvendo-a em um acidente. Foi quando me dei conta da loucura que estava fazendo com a minha vida. Naquele momento, eu me sentia seriamente perdido. Não desejava seguir filosofias, nem religiões. Eu precisava de alguém que me guiasse. E, então, eu O conheci, e Ele mudou completamente a minha história. Quanto mais eu lia sobre Jesus, mais próximo dEle eu me sentia. Até que um dia, ao lado de Dante, pronunciei as palavras que revolucionariam a minha vida para sempre: eu acredito. E de repente senti-me limpo, como se tivesse tomado um banho por dentro.

Mas não era essa menina que estava na minha frente agora. Era uma amiga dela, uma desconhecida para mim. Esta realmente conseguiu me mostrar quem eu era lá no fundo. Alguém que eu não conhecia, mas que gostei muito de descobrir. Uma pessoa que me lançou em um desafio, mostrando-me uma luz diferente de tudo aquilo que eu chamara de confiança divina. Na verdade, nunca sabemos até que ponto acreditamos em alguma coisa até que essa conclusão se torne caso de vida ou de morte. É fácil acreditar na solidez de uma corda, desde que não seja preciso arremessar-se amarrado nela.

Sempre fui um cara que teve muitas facilidades, principalmente com as mulheres - que sempre se iludem fácil com qualquer beleza acima da média. Veja bem, não sou tão convencido, só repito o que escuto. Mas eu sempre soube me aproveitar dessa vantagem, que me abriu muitas portas, mas me meteu em muita encrenca também. Quantas vezes acabei a noite com um olho roxo ou deixando a casa de uma mulher pela janela! Ainda assim, essa beleza me ajudou durante anos. Vivi à custa de uma mulher mais velha do que eu - Amália -, mas não foram os quinze anos de diferença entre nós que me impediram de me apaixonar por ela. Eu já era apaixonado, por mim mesmo. Usei muitas mulheres e também fui usado por elas, mas sempre resguardando meus sentimentos. Nunca me fixei em nenhuma.

Tive motivos para não acreditar em uniões estáveis, pois minha vida não foi fácil na infância. Eu era pobre e aturava um bêbado inveterado que se denominava meu pai, mas acho que eu era o pai dele na maior parte do tempo. E minha mãe... Bem, ela não era a mais carinhosa das criaturas. Eu era doido para fugir dali, mas graças a Deus segui por um caminho um pouco melhor do que muitos caras na mesma situação: resolvi estudar. Achei uma saída para aquele sofrimento todo e um mundo inteiro se abriu ao meu redor. Joguei o capelo para o alto no ano de 2005, me formei em Letras, com especialização em Francês, em uma universidade pública. Quatro anos depois, eu já era professor auxiliar de lá. Como disse antes, as coisas foram meio fáceis para mim. Meus amigos me diziam que eu tinha uma boa estrela. Cheguei a morar por quase um ano na França à custa de Amália. Eu achava que era sorte, mas no fundo eu sabia que um cabelo loiro, olhos verdes e uma pele bronzeada me ajudavam um pouquinho. Na verdade, muito. Além de tudo, eu também malhava por horas para ostentar o único orgulho que me restava na vida. Sei como isso soa fútil. Na verdade, realmente eu era, e fico feliz por poder falar assim agora: eu era. Além do que, eu também não acreditava em felizes para sempre. Acreditava em confortável para sempre. Mas eu estava enganado, o "felizes para sempre" existe, mesmo quando não é do jeito que você imagina.

Então, nos conhecemos assim, em uma festa de casamento. Depois do bilhete azul de Angelina, que me deixou arrasado, ela apareceu e me chamou para conversar. Provavelmente, imagino, ao ver o torpor que me abatia naquela hora. No início eu não queria ir, queria ficar sozinho para aplacar as minhas dores, mas seus olhos foram tão gentis que não havia como recusá-los. Então eu fui, e nunca me arrependi dessa decisão em toda a minha vida.


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