III.

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A minha cabeça lateja. Não sinto o meu próprio corpo. Tento somente mover os dedos mas nem sou incapaz de tal. Forço a minha mente a relembrar-se do que tinha acontecido mas a minha memória estava mais vazia que o local onde me encontrava.

Olho em meu redor na tentativa - falhada - de tentar perceber onde estava ao certo. Ainda com visão turva e pouco nítida, avisto uma porta mais negra do que as paredes de cimento claro. O chão era claramente de pedra. Conseguia ver uma pequena janela que refletia o meu ser deitado numa cama alta, tapado com um misero lençol branco, e mais uma longa mesa que se encontrava atrás de mim. Contudo era incapaz de observar a minha face no reflexo, somente o delinear dela sem pormenores.

- Paciente 080515, sala 2. - Uma voz de homem ecoou dizendo tais palavras que me eram desconhecidas. «Paciente 080515? Que merda é essa? Agora há números para as pessoas?»

A porta negra abre-se lentamente. Vejo um vulto ainda desfocado a movimentar-se passivamente na minha direção. A cada passo que oiço, é mais um arrepio que trespassa o meu corpo gélido da cama de metal barato onde pouso.

- Então Kaya? - Era uma voz um tanto familiar à minha pessoa, mas não conseguia identifica-la. - Como se sente? Sente algo de diferente?

Abro os olhos tentando focar a figura que se encontrava á meia beira. Mentalmente tento associar o seu rosto a uma pessoa cá da "casa".

- Estou bem. - Respondo hesitante. Não sabia com quem estava a falar e isso estava a deixar-me inquieta. Gosto de saber com quem "troco palavras". Antes de falar com Hannah pela primeira vez observei-a. Delineei cuidadosamente a sua personalidade da mesma maneira que um escritor descreve as suas personagens. Observei as suas ações, a maneira como reagia perante as coisas, perante as imposições das vigilantes. Ela era a única - sem contar com o meu belo ser - que quando não concordava com algo se impunha e debatia. E oh se ela tinha jeito para argumentar, era sempre até ao último instante a defender-se com unhas e dentes. Contudo as constantes "trocas de argumentos" deixaram-na a ela e a mim na lista negra daquela gente mais demente do que eu.

- Não sente nada de anormal? - Disse ao baixar o seu tronco de forma a encarar-me na face, olhos nos olhos. Via o meu reflexo no seu olhar. Não sei como reagir ao mesmo. Os meus olhos estão mais claros do que eram. A minha pele parece reluzir como o mar quando o sol se deita sobre ele. Tenho uma aspeto tão angelical... O meu rosto era meu na mesma, mas estava diferente. Não parecia eu.

Vi a mulher vestida de preto a afastar-se. Não me olhou mais. Simplesmente virou as costas e dirigiu-se a porta. Somente agora reparei que era alta. Tinha cabelos escuros apanhados no pequeno tufo no topo da sua cabeça. Tinha um ar tão profissional, mas nada médico. E gente, eu sei bem qual é o aspeto de um médico. Batinha branca, cabelinho arranjado, anel de curso no dedo, sapatos com brilho, sorriso amigável, pose profissional.

Quando a porta fecha brutalmente e se houve fechadura a trancar-se, tento levar-me. Estava cansada de estar deitada sem saber onde estou e o que me aconteceu. O meu tronco ergue-se lentamente, e a minha cabeça volta a latejar. Sinto o a terra a rodar caramba. Pouso um pé no chão frio e de seguida o outro, e espero pelos 20 segundos de coragem que me vão ajudar a depositar o peso do meu corpo nas minhas pernas. Vejo sombras a cobrirem o chão acinzentado. Eram como o nevoeiro matinal que cobria a serra, ia tomando controlo lentamente, avançando de surra.

No momento em que os meus pés nus atingem o chão e me ponho em pé as sombras afastam-se como se eu fosse um ser venenoso e elas tivessem receio de me tocar. Caminho devagar, ainda a tentar focar-me em manter o equilíbrio da minha pessoa. Encosto o rosto a porta e oiço vozes a ecoar longe dali. Vozes apressadas e amedrontadas.



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