Capítulo 6 - Malve

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Era uma propriedade rural muito humilde, distante da estrada principal. A casa, pequena e simples, era cercada de terra arenosa onde cresciam apenas arbustos e ervas daninhas. Sem delongas, Dimitri e Flora desmontaram e ele prendeu o cavalo à cerca na entrada da casa.

Com um sobressalto, Flora percebeu que não estavam sozinhos. Mas se tranquilizou em seguida, ao descobrir que, ao seu lado, surgira uma menininha, que a observava com atenção. Tinha os cabelos tão alvos, que Flora quase podia ver as cores do arco-íris refratadas nos fios, como um prisma.

Flora sorriu para acalmar a menina, que não devia ter mais de cinco anos e a olhava assustada. Mas ela não se mostrou receptiva. Somente ao se voltar para Dimitri seu rosto se iluminou. Então correu para dentro da casa, e sua voz infantil pôde ser ouvida lá de fora:

– Mamãe! O tio Dimitri tá machucado!

Uma mulher saiu da casa, limpando as mãos no avental. Aparentava mais de trinta anos e estava muito preocupada. Vinha seguida de perto por sua filhinha.

– Oh, por Zyria! É você mesmo, Dimitri! – Muito carinhosamente, segurou o rosto dele com as duas mãos, custando a acreditar na visita repentina. – Desde que você partiu para a Ilha Oscilante, pensei que eu nunca mais voltaria a vê-lo! Está ferido? Entre! Quem é a sua amiga? Venha para dentro, querida – dirigiu as últimas palavras a Flora.

O interior da casa era constituído de um único aposento, uma mistura de cozinha e quarto. A mulher fez com que ele se sentasse e tirasse a camisa. Assustou-se ao ver o grande número de cortes por todo o corpo, e em seguida colocou as mãos na cintura e lhe lançou um olhar zangado, como a mãe que repreende o filho.

– O que você aprontou dessa vez?

– Eu a encontrei, Malve. Esta é Flora, a princesa perdida de Hynneldor.

Surpresa, Malve observou Flora atentamente, por um longo instante. Era naquela jovem que estava depositada a esperança de todo o reino. Notando que a curandeira havia parado de examinar seus ferimentos, Dimitri apontou para o mais profundo, no ombro direito, que Flora lhe causara pelas costas:

– Por favor, cuide desse aqui. Os outros são superficiais.

– Vamos cuidar de todos! – Disse ela, de volta a si.

Malve e Dimitri conversavam como velhos amigos, e no início Flora se sentiu deixada de lado. Porém, com o passar das horas, ficou à vontade. Quando a noite fria começou a cair, todos se acomodaram perto do fogão, onde uma sopa de raízes borbulhava numa panela. A curandeira havia tratado os ferimentos de Dimitri usando uma pasta de ervas mágicas, dedicando especial atenção ao ombro. Cedera-lhe a cama para dormir, enquanto ela, sua filha e Flora se acomodariam no chão forrado de palha.

Flora sorriu agradecida, enquanto Malve lhe servia uma pequena porção de sopa. Depois de tanta preocupação, era bom descansar sentada próxima ao fogo, nem que fosse por uma só noite. Com Dimitri, Malve e sua filha, Aura, sentados todos ao seu lado, Flora por um momento voltou a sentir a alegria de estar em família. Pensou, então, na saudade que sentia de seus muitos irmãos e de seu pai, deixados para trás, e, com pesar no coração, lembrou-se de sua mãe.

As revelações sobre o passado de Flora e sua partida da ilha de Ashteria foram tão repentinas, que ela mal tivera tempo de pensar a respeito. Como podia ter se despedido de seus pais de forma tão insensível? Na realidade, sequer havia se despedido. Apenas os abandonara, sem uma única palavra de conforto, como só uma filha ingrata faria. E como se arrependia! A saudade que agora sentia era dolorosa.

Mas ficar se lamentando não resolveria o problema, Dimitri já tinha lhe dito que o caminho para a ilha demoraria a se abrir novamente. Agora, tudo o que Flora podia fazer era manter-se viva. Conheceria seu irmão, Fausto, o auxiliaria no que pudesse, e se prepararia para retornar a Ashteria assim que possível.

– Você cresceu! – Os devaneios de Flora foram interrompidos pela conversa de Dimitri com a pequena Aura. – Onde está o seu irmão?

– Dimitri, isso tudo é culpa sua! – Bradou Malve. – Depois dos linces-da-floresta, Terell nunca mais foi o mesmo! Às vezes some, fica dias sem aparecer! Se ficar igual a você, eu juro que os dois vão se ver comigo!

Dimitri deu risada, e contou a história inteira para Flora. Ele conhecera Terell anos antes. Deparara-se com o menino sozinho e assustado, sendo perseguido por um bando de linces-da-floresta famintos. Por sorte, conseguiu resgatá-lo a tempo. Daquele dia em diante, Terell passou a idolatrá-lo, desejando seguir seus passos, quando crescesse.

– E agora ele já é quase moço! Em alguns dias, não vou mais conseguir segurar esse menino em casa! – Reclamou a mãe.

– E os linces, você os matou? – Flora perguntou, já imaginando que a resposta seria afirmativa. Mas, para seu espanto, Dimitri negou:

– Eu só os espantei com uma tocha e levei o menino para casa. Linces-da-floresta não costumam caçar seres humanos, não temos porque matá-los. Aqueles deveriam estar com muita fome... A fome aflige a tudo e a todos nesses tempos de miséria.

Flora sentiu uma ponta de remorso por tê-lo julgado mal. Olhando novamente para sua sopa, percebeu o quanto era simples. Rala, feita de raízes sem gosto. A essa hora, em Ashteria, estaria tomando um suculento ensopado de peixe com tomates e especiarias perfumadas. Viu que Malve e Aura eram bastante magras, e se sentiu mal em estar ali, fazendo com que repartissem seu alimento.

Depois de tudo o que passaram, Flora se convencera de que Dimitri não era uma pessoa ruim. Ele apenas queria cumprir sua missão, não importava o que isso lhe custasse. Enquanto ele se preparava para dormir, Flora se aproximou, mas não sabia ao certo o que queria lhe dizer. Então, disse tudo o que lhe veio à cabeça:

– Eu duvidei de você. Fugi, deixei você para trás de propósito, e ainda te machuquei! Por favor, me perdoe... eu não fiz por maldade! O Nathair, ele... me contou mentiras horríveis sobre você! Sobre matar crianças, pescadores... eu fiquei com tanto medo! Mas agora eu sei que posso confiar em você. Me perdoe por ter agido tão errado...

Dimitri apenas esperou calado, enquanto Flora dizia tudo o que sentia vontade. Seu olhar transparecia um misto de paciência e sofrimento, e as palavras dela não pareciam surtir o efeito esperado.

– Não é preciso inventar mentiras para me difamar, Flora. Eu já percorri caminhos perigosos, fiz coisas que você nem imagina. Estive perdido, seguindo falsas pistas do paradeiro da princesa de Hynneldor. No caminho, conheci todo tipo de gente e cometi erros irreparáveis. Não posso negar meu passado e não tenho como desfazer o que está feito, mas eu te prometo, Flora, que vou compensar os velhos erros com novos acertos. Mas, primeiro, preciso levar você em segurança para Amitié, que é onde você pertence.

– Muito obrigada, Dimitri. Eu admiro a sua lealdade.

– A lealdade é a essência do homem. Nathair pode ainda não saber, mas a traição faz com que a alma apodreça aos poucos.

A Rainha da Primavera - 2ª EdiçãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora