Mesmo assim, a reação dele foi imprevisível.
Primeiro, uma risada baixa — aquela risada seca, quase sem ar, que Shadow dava quando algo o deixava intrigado ou incomodado.
— Você? — murmurou, ainda com aquela expressão entre desprezo e fascínio — um médico... pedindo minha ajuda?
Mantive o rosto sereno. Reprimindo a vontade de rir.
— É. — respondi simplesmente. — Essas aqui estão... um pouco confusas.
Shadow estendeu a mão. Apenas três dedos, como se não quisesse tocar o papel inteiro.
Entreguei a folha.
Shadow a segurou com um certo cuidado — clique técnico, precisão de quem entendia de música — mas os olhos escureceram assim que viram o que estava ali.
— Isso aqui tá uma porcaria. — rosnou. — Quem anotou isso? Alguém cego?
Escondi o sorriso.
— Um aluno meu. — menti tranquilamente.
Shadow ergueu uma sobrancelha, cético.
— Seu aluno toca igual você toca fá sustenido?
— Talvez — disse, tentando não rir.
Shadow bufou, irritado, mas estava preso na tarefa. Ele não conseguia evitar.
A partitura estava errada demais. E aquilo feria algo nele que não era nenhum transtorno — era apenas a alma do músico.
Ele aproximou o papel do rosto, os olhos se movendo rápido, lendo cada compasso.
— Isso aqui está invertido. — disse, tombando a cabeça. — E aqui... quem diabos escreveu um dó maior aqui?! Isso não faz sentido!
Eu acompanhava com sincero interesse.
— Acha que dá pra arrumar?
Shadow olhou para mim com profunda indignação.
— EU arrumo. — disse simplesmente. — Não "dá". EU.
E pegou um lápis da mesa sem pedir.
A ponta do grafite deslizou com precisão absurda: corrigindo, riscando, traduzindo.
Shadow se inclinava mais, totalmente absorvido, como se tivesse esquecido que deveria estar me tratando com desdém.
Pela primeira vez...
Shadow parecia humano.
Mortal.
Vulnerável não no sofrimento — mas no talento.
O observei em silêncio, analisando cada microexpressão: a concentração excessiva, o franzir do cenho, os lábios contraídos, o jeito como a mão esquerda tremia só um pouco por causa da medicação intravenosa da manhã.
Quando Shadow terminou a primeira linha, jogou o lápis para mim sem olhar.
— Isso aqui... — apontou — está errado por motivos criminais. A pessoa que fez isso devia ser presa.
Contive a gargalhada.
— Você acabou de me salvar de uma performance horrível, então.
Shadow rolou os olhos.
— Você precisa de mais do que isso pra ser salvo.
— Provavelmente. — respondi.
E no meio daquela troca ácida, involuntária, estranhamente cooperativa...
Um segundo detalhe aconteceu:
Pela primeira vez desde que nós conhecemos...
Shadow não me mandou ir embora.
Não se levantou.
Não virou de costas.
Não entrou na cabana.
Não riu de maneira perturbadora.
Ele... ficou.
Ali.
Comigo.
Corrigindo partituras como se isso fosse normal.
Shadow passou o olhar para a segunda folha — e então congelou.
Os dedos apertaram o papel.
A respiração mudou, ficando mais curta, mais ruidosa.
Percebi imediatamente.
Gatilho? Memória? Raiva? Medo?
Shadow piscou devagar, como se estivesse lutando contra alguma sombra antiga dentro da própria cabeça.
E então...
— Por que está fazendo isso? — perguntou, a voz baixa, arranhada.
Mantive o tom calmo.
— Porque quero te ouvir.
— Eu não falo.
— Mas toca.
Shadow desviou o olhar de imediato.
Como se aquilo fosse íntimo demais.
Ele entregou a folha de volta, sem olhar para ela.
— Vai embora, Vanilla.
Guardei calmamente as partituras e o violino.
— Vou. — disse, levantando-me. — Mas amanhã... quero ouvir você de novo.
Shadow virou o rosto para a parede, encolhendo-se levemente como um animal que não queria admitir que estava prestes a responder. E quando chego à porta, já com a mão pronta pra bater, ouviu a voz baixa, quase inaudível:
— ...é sustenido.
Sorri sem virar o meu corpo.
— Eu sei.
O vigia abriu a porta.
E sai.
E pela primeira vez...
Eu achei aquele paciente perigoso, mais fascinante do que nos termos de trabalho.
1622 palavras.
Erros de Português?
Não revisei.
YOU ARE READING
𝐋𝐨𝐫𝐚𝐳𝐞𝐩𝐚𝐦 𝐕𝐢𝐯𝐨 (𝐒𝐡𝐚𝐝𝐨𝐰𝐯𝐚𝐧𝐢𝐥𝐥𝐚 𝐞 𝐏𝐮𝐫𝐞𝐒𝐡𝐚𝐝𝐨𝐰)
Fanfiction𝑺𝒆𝒎𝒑𝒓𝒆 𝒅𝒊𝒛𝒆𝒎 𝒒𝒖𝒆 "𝒏𝒊𝒏𝒈𝒖𝒆́𝒎 𝒆́ 𝒅𝒆 𝒇𝒆𝒓𝒓𝒐" 𝒆 𝒂𝒑𝒓𝒆𝒏𝒅𝒆𝒎𝒐𝒔 𝒊𝒔𝒔𝒐 𝒅𝒆 𝒎𝒂𝒏𝒆𝒊𝒓𝒂𝒔 𝒅𝒊𝒗𝒆𝒓𝒔𝒂𝒔. 𝑴𝒂𝒔 𝒔𝒆 𝒖𝒎 𝒑𝒔𝒊𝒄𝒐́𝒍𝒐𝒈𝒐 𝒕𝒆𝒗𝒆 𝒎𝒐𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐𝒔 𝒕𝒓𝒂𝒖𝒎𝒂́𝒕𝒊𝒄𝒐𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒂𝒊𝒏𝒅𝒂 𝒏...
~•|| Capítulo 07 ||•~
Start from the beginning
