Naquela noite, depois de conversar com Latte, eu fiquei até mais tarde no hospital, sentado na pequena sala dos residentes, com a ficha de Shadow aberta diante mim. As lâmpadas frias faziam sombras mexerem sobre os papéis, e o silêncio da madrugada deixava tudo mais íntimo, quase confessional.
E lá estava um detalhe que eu nunca tinha notado, por provavelmente lerdeza:
"Habilidades: toca violino desde os 7 anos.
Tocar música clássica costuma diminuir crises dissociativas. Evitar peças com notas demasiadamente agudas."
Parei.
Li de novo.
E senti algo acender no peito.
Eu também toco violino.
Tocava desde criança — foi uma das coisas que o terapeuta recomendou na adolescência para canalizar as crises de raiva. Criei vínculo com o instrumento, com o som, com o processo minucioso de posicionar dedos, respirar, sentir.
E foi ali, naquela madrugada silenciosa, que uma ideia ousada — e um pouco desesperada — surgiu na minha cabeça perturbada.
Se Shadow não falava comigo...
Talvez o violino falasse.
Passei horas pensando.
Peguei meu próprio violino no porta-malas do carro — sempre deixava lá, caso sentisse vontade de tocar depois do trabalho — e o coloco ao lado da mesa.
Precisava escolher algo que provocasse Shadow. Não algo perfeito.
Mas algo... errado o suficiente para incomodar.
E encontrei.
— Essa vai ser a minha maior vigarice...
Uma música simples, mas com várias notas sustenidas. Sevivon.
E eu tocaria naturalmente. Sem os sustenidos.
Para deixar Shadow irritado.
Para obrigá-lo a reagir.
Era um risco.
Mas tudo com Shadow era.
Na manhã seguinte, chego cedo — bem mais cedo do que o normal — com o violino na capa pendurado no ombro. Passei direto pela sala de Latte, que ainda não tinha chegado, e caminhei até o corredor de segurança máxima.
O guarda estranhou, claro.
— Instrumento? — indagou, levantando a sobrancelha.
— Terapia sonora — disse, o mais sério possível.
O guarda o olhou como se eu fosse maluco (sou mesmo) — mas liberou.
Quando eu entrei no quarto, Shadow estava sentado no chão, desmontando e montando um quebra-cabeça de 24 peças, com a expressão perdida e hostil de sempre.
Shadow levantou um pouco o olhar quando ouviu a porta abrir — apenas o suficiente para reconhecer que era eu— e imediatamente voltou a me ignorar.
Respirei fundo.
E, sem dizer uma palavra, tirei o violino da capa.
Shadow nem reagiu.
Nem piscou.
Ajustei o apoio do ombro, o arco, passei o breu, posicionei o violino no ombro, respiro fundo e começo a tocar...
Errado.
Propositalmente errado.
Certo:
Mi-mi-fa#-sol-sol-fa#
O que eu fazia:
Mi-mi-fa-sol-sol-fa
As notas sustenidas soavam naturais.
As passagens que deveriam cortar o ar pareciam mornas, burras, achatadas. E vai por mim, pra um músico é que nem uma facada no rim, de tão irritante.
Por três segundos, Shadow continuou me ignorando. Por cinco segundos, franziu levemente a sobrancelha. Por oito segundos... os olhos dele se ergueram com violência.
— PARA. PELO AMOR DE DEUS...
A voz saiu quase como um rosnado.
Continuo tocando.
Shadow levantou o corpo devagar, como se algo dentro dele estivesse sendo arrancado à força.
YOU ARE READING
𝐋𝐨𝐫𝐚𝐳𝐞𝐩𝐚𝐦 𝐕𝐢𝐯𝐨 (𝐒𝐡𝐚𝐝𝐨𝐰𝐯𝐚𝐧𝐢𝐥𝐥𝐚 𝐞 𝐏𝐮𝐫𝐞𝐒𝐡𝐚𝐝𝐨𝐰)
FanfictionSempre dizem que "ninguém é de ferro" e aprendemos isso de maneiras diversas. Mas se um psicólogo teve momentos traumáticos que ainda não cicatrizaram, seria certo se ele tratasse alguém pior? Qual a diferença entre esquizofrenia e ansiedade? Nenhu...
