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Cora teve uma noite intranquila de sonhos confusos e momentos de consciência. Não que seu novo quarto tivesse alguma culpa disso: a cama era extremamente confortável, o frio estava ameno e o silêncio absoluto proporcionado pelo isolamento da mansão convidava para horas de relaxamento. Ainda assim, quando o céu noturno começou a se tingir do azul claro e cinzento que anuncia o raiar do dia, jogou as cobertas para o lado e tateou o chão à procura da mochila. Dez minutos depois, estava vestida e enrolada numa manta, abrindo a porta com cautela para espiar a movimentação do corredor. Parecia deserto.

Refez os passos de Sofia no dia anterior, descendo as escadas e alcançando o hall de entrada. Precisava muito sair e respirar um pouco de ar puro. Nenhum sinal indicava onde estariam os outros ocupantes da casa, fazendo com que Cora hesitasse em abrir a imensa porta, apreensiva de que o barulho pudesse chamar a atenção de alguém.

Demorou quase uma eternidade para se livrar das pesadas trancas que prendiam a porta, cada movimento feito de maneira lenta e cautelosa. A madeira rangeu quando recebeu o primeiro puxão e a garota fechou os olhos com uma careta, esperando que a qualquer momento o som de passos pudesse ser ouvido pelos corredores. No entanto, aparentemente o barulho passara despercebido, e a fresta resultante permitia, com algum esforço, a passagem de um adulto pequeno. A garota se esgueirou pela abertura, alcançando a varanda.

O ar estava fresco e úmido por causa da proximidade dos bosques e jardins ainda envoltos na névoa das primeiras horas da manhã. A fraca claridade projetava dezenas de sombras pela varanda, os banquinhos encobertos à meia-luz. Um movimento vindo da direita chamou sua atenção.

"Não conseguiu dormir?"

Haru estava sentado num dos bancos de madeira, as pernas para cima e os braços em torno dos joelhos, também enrolado numa manta. Cora aproximou-se arrastando os pés e sentou ao lado dele.

"É como se eu estivesse mais cansada do que quando cheguei...E quanto a você, tenho plena certeza de que aquela porta estava com todas as fechaduras possíveis pelo lado de dentro."

"Existem outras formas menos óbvias de sair desta casa" ele ergueu os ombros.

O garoto tinha o olhar perdido ao longe, observando o portão de ferro que levava à estrada. Ficaram em silêncio por algum tempo até Cora falar novamente, as palavras surgindo rápido, mais uma confissão do que um simples comentário.

"Estou nervosa sobre o que vai acontecer hoje."

Haru sorriu e virou o rosto para ela, segurando uma pequena mecha de cabelo ruivo e colocando-a por trás da orelha da garota.

"Você seria uma pessoa bem estranha se não estivesse nervosa. Mas tenho certeza de que vai se sair muito bem."

Cora sentiu o sangue fluir para as bochechas ruborizadas no instante em que Haru segurara seu cabelo. O garoto pareceu perceber o gesto, retraindo rapidamente a mão e virando-se pra frente.

"No início todas estarão tão perdidas quanto você" disse ele. "Além disso, você já está na dianteira por ter tido um excelente guia."

Cora revirou os olhos, sorrindo.

"Ah, claro, agradeço todos os dias pela minha sorte."

"Faz muito bem. E agora seja grata e trate de ser a próxima Nove Caudas para que eu possa me gabar por isso pelo resto da vida."

"Você realmente acha que seria possível eu me tornar a substituta?"

"Ora, claro que sim. Estou apostando nisso. Quando eu voltar você já estará bem diferente, bem mais forte, você vai ver."

A expressão divertida de Cora desapareceu de imediato, substituída por um vazio repentino.

"Você está indo embora?"

"Recebi outra tarefa agora que meu trabalho aqui terminou: você já está entregue em segurança. Vou ajudar a trazer outra garota para cá. Precisamos do maior número possível, você sabe."

"Mas você não pode ir embora!"

O tom de desespero na voz de Cora surpreendeu ambos. Ela não pretendia soar tão esganiçada, tão vulnerável. O garoto a olhava com um semblante sério e silencioso, esperando por mais explicações.

"Ah, Haru, você é...a coisa mais próxima de um amigo que tenho aqui. Todos que conheço ficaram pra trás" ela esfregou o rosto com as mãos. "Sei que praticamente nos conhecemos ontem, mas é como se você fosse minha única referência familiar, um ponto de apoio no qual eu confio."

"Cora, eu..."

"A ideia de ficar aqui sozinha simplesmente me assusta."

Haru parecia tão desconcertado quanto ela, abrindo e fechando a boca sem saber exatamente o que dizer. Por fim, falou com uma voz calma: 

"Eu lhe disse uma vez que as coisas não podem girar em torno de você. Que existem coisas maiores e mais importantes que precisamos fazer."

Cora abaixou o olhar, afundando até o nariz em sua manta. Como era boba. Toda aquela experiência era única para ela, algo totalmente novo. Mas para Haru, tudo pareceria apenas mais um dia de trabalho. Ele não se sentira deslocado, ele reconhecera muitos rostos amigos naquela casa e em nenhum momento sentira medo. Tudo estava normal para ele. Por qual motivo achara que o garoto criaria um vínculo com ela? Que seria seu amigo?

"Desculpe, estou sendo infantil" falou, com a voz mais sem emoção que conseguiu reunir.

Para sua surpresa, Haru virou-se completamente no banco, ficando bem de frente para ela, os olhos castanhos levemente cobertos pelos cabelos bagunçados.

"Tenho certeza de que entendeu o que eu quis dizer. E quando falo que você está entregue em segurança, não é apenas um modo de falar. Existem muitas pessoas boas nesta casa. E não se preocupe, vou continuar de olho nas coisas por aqui mesmo enquanto estiver fora."

Cora balançou a cabeça afirmativamente e tentou esboçar um semblante animado enquanto levantava do banquinho.

"Acho que vou voltar para o meu quarto. Está amanhecendo pra valer agora e daqui a pouco alguém vai bater na minha porta. Não quero ganhar a fama de menina rebelde logo no primeiro dia."

"É uma boa ideia" ele sorriu. "Bom, estou saindo logo após o café da manhã, então...se cuide, está bem?"

"Você também. Boa sorte com a próxima garota, espero que ela não grite pela polícia nem nada."

A sensação do olhar divertido de Haru acompanhou-a pela varanda. Quando alcançou seu quarto e silenciosamente trancou a porta, recostando-se na cama, sentiu lágrimas quentes riscando o contorno de seu rosto, finalmente libertas. Cora não saberia nem mesmo explicar todos os motivos pelos quais estava chorando.

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