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O sábado amanheceu preguiçoso em Catslake City, envolto em sua névoa habitual. Cora cobriu o rosto com um dos braços quando a claridade finalmente penetrou o vitral da sala. Um pálido raio de sol perfeitamente posicionado para acordá-la. 

Ainda de olhos fechados, a garota começou a reparar no ambiente a seu redor. O gentil barulho de louça sendo carregada pra lá e pra cá no andar de baixo e, principalmente, o cheiro de pão que invadia o espaço indicavam que Miss Maddie já havia chegado e que a Confeitaria estava a todo vapor. 

O mais engraçado, no entanto, era que não estava deitada em sua cama. Sabia que estava com seu travesseiro, podia sentir a textura com os dedos, e o edredon também, mas não conseguia explicar porque estava dormindo no velho sofá azul da sala, ao lado do janelão que ocupava quase toda a parede de tijolos. A lembrança veio de repente, como um raio. A noite no pub. O garoto surgindo do nada e lhe falando coisas sem sentido. Como resolvera dormir na sala para vigiar a rua através da janela e ter a certeza de que tudo estava bem. 

Ficou de pé em um pulo e varreu o apartamento com os olhos, ainda apreensiva. Tudo parecia estar no lugar e não havia nenhum sinal de estranhos. Deixou-se cair novamente no sofá e, esfregando os olhos, começou a remoer o que o jovem lhe dissera na noite anterior. Como era mesmo o nome dele? Haru? Um nome japonês, definitivamente. E ele havia falado algo sobre kitsunes. Cora sabia que uma kitsune era um personagem folclórico no Japão. Havia assistido muitos animes na adolescência que falavam sobre pessoas meio humanas, meio raposa, com poderes mágicos. Assim, o que o garoto havia dito não tinha a menor conexão com a realidade. Haru, se é que era o nome dele mesmo, devia ser só mais um cara bêbado que quis pregar uma peça numa sexta-feira à noite, usando um ser fantástico saído da mitologia do país natal. E talvez fosse hora de simplesmente esquecer do episódio e seguir com a vida.

Cora amarrou os cabelos despenteados num coque, lavou o rosto e escovou os dentes na esperança de se tornar apresentável para o café da manhã. Calçou suas botas, vestiu o casaco e desceu a escadaria aos pulos.

"Você está um lixo e eu não vou nem perguntar que horas chegou em casa."  disse Miss Maddie, assim que Cora atravessou a porta da frente da Confeitaria.

"Muito obrigada."

"Senta. Vou pegar alguma coisa pra você comer e um café bem forte." virou-se para um senhor barrigudo e de barba branca que estava atrás do balcão segurando uma assadeira repleta de pequenos pãezinhos. "Ô, Frank! Continua servindo o pessoal aqui e tomando conta de tudo que eu vou tomar um café com a menina."

Demorou cerca de cinco minutos para que Miss Maddie trouxesse um banquete para a mesa onde Cora se sentara, no canto do salão. Daria para alimentar, facilmente, umas oito pessoas.

"Eu não vou conseguir comer tudo isso, não precisa, sério... obrigada." dizia a garota, a cada vez que uma nova iguaria era depositada no tampo envidraçado da mesa de madeira.

Não é todo dia que se conhece alguém como Miss Maddie, e Cora lembrava bem do dia em que a conhecera. Sempre imaginara que a dona de um local chamado Sugar Granny deveria ser uma frágil velhinha de cabelos brancos, que faz tricô para os netos e coleciona gatos. Miss Maddie não tinha netos, nem filhos e nem gatos. Tinha por volta de cinquenta anos, a pele negra e cabelos crespos levemente grisalhos que emolduravam seu rosto até a altura do pescoço. Era uma senhora rechonchuda, o que, segundo ela, era apenas uma consequência do ofício que escolhera. O mais marcante em sua fisionomia, no entanto, eram os olhos. Talvez a única coisa mais brilhante que seu sorriso. Ela possuía olhos extremamente escuros, que brilhavam de um jeito que Cora só poderia descrever como o brilho de alguém que está realmente fazendo o que ama.  

Miss Maddie nascera e vivera toda sua vida em Catslake, em uma pequena propriedade na área rural da cidade. Ela dizia que sua família era descendente de algum filho de Pablo Fanque, o primeiro proprietário negro de um circo britânico. Havia uma pintura dele montado em um cavalo no centro do picadeiro, na parede atrás do balcão da Confeitaria. Talvez por causa dessa genética empreendedora, Miss Maddie sonhava em ter seu próprio estabelecimento desde que era pequena. Estudara e trabalhara por anos até ter condições de abrir o Sugar Granny. Cora perguntara certa vez o motivo do nome do local.

"Ah, você sabe como são as coisas. Catslake City ainda é uma cidade muito tradicional. Ninguém iria frequentar isso aqui se soubessem que não sou avó. Parece que só avós podem fazer doces confiáveis. E só homens barrigudos podem fazer bom pão, por isso contratei o Frank."

Todos sabiam do relacionamento entre Miss Maddie e Frank. Não que eles fizessem algum esforço para esconder, mas também nunca oficializaram nenhum status. Eram, por assim dizer, eternos namorados. Frank havia servido no exército por muito tempo, antes de abandonar tudo e se render ao ofício de padeiro, que aprendera ainda criança com o pai. Fora o primeiro funcionário contratado na Sugar Granny, a mais de quinze anos.

Mas, no momento, os brilhantes olhos de Miss Maddie estavam muito ocupados esquadrinhando o rosto da garota ruiva à sua frente.

"Sabe..." deixou escapar finalmente. "Sei que não sou sua mãe nem nada... mas sinto que aconteceu alguma coisa. De todos os jovens inquilinos que tive, você é a única que não costuma chegar tarde ou com cheiro de bebida."

"Eu estou bem, só não consegui dormir quase nada."

Miss Maddie segurou sua mão por cima da mesa:

"Aconteceu algo com a sua família? Você pode me contar, se quiser."

"Não, não foi nada sobre eles."

Cora respirou fundo e tomou mais um gole de café. Odiava deixar as pessoas preocupadas com ela, ainda mais com uma história sem pé nem cabeça como a que havia vivido no dia anterior. Mas, de alguma forma, precisava compartilhar isso com alguém. Se contasse, poderia trazer o ocorrido para um pouco mais perto do mundo real e quem sabe até poderia rir disso tudo. Entreabriu os lábios por um breve momento, pensando em como começar.

"Veja só, eu estou bem, não foi nada de mais, certo? Quando estava voltando pra casa ontem de madrugada, um rapaz esquisito me abordou na porta."

Cora percebeu imediatamente que escolhera as palavras erradas, porque Miss Maddie arregalou os olhos e já estava enchendo os pulmões para protestar quando a garota a interrompeu.

"Mas não aconteceu nada! Me escute. Não foi bem abordar, ele só veio e me disse umas coisas estranhas. Depois saiu andando."

A garota continuou o relato, enchendo-o com todos os detalhes de que lembrava. A testa de Miss Maddie estava ficando cada vez mais franzida.

"E você tem certeza de que nunca viu esse garoto por aqui?"

"Absoluta."

"Como você disse que ele era?"

"Asiático, alto, cabelo comprido, deve ter mais ou menos a minha idade" um sorriso brincou nos cantinhos de sua boca. "Eu diria que ele era até bem bonito, se não fosse louco."

Miss Maddie ergueu uma sobrancelha inquisitiva.

"Bom, bonito ou feio, vou ficar de olho. Vou dizer ao Frank que preste atenção nos próximos dias. De qualquer forma, foi só o susto. Já passou."

"Como eu tinha dito, estou bem."

"Certo, mas continue comendo para eu ter certeza de que está bem mesmo." 

Cora espetou um pastelzinho doce de maneira enfática e o colocou na boca com toda a pompa. Miss Maddie sorriu e se levantou da mesa.

"Assim está ótimo. Preciso voltar para o meu balcão, mas se precisar de mim, não se acanhe em falar, está bem?"

Não havia se afastado nem dois passos quando deu meia volta e acrescentou:

"E se eu fosse você, iria dormir mais cedo hoje."


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