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O barulho das ondas foi a primeira coisa que ouviu. O som cadenciado e espumoso da arrebentação era como uma cantiga, uma melodia familiar.

A raposa, ainda de olhos fechados e sentindo-se dormente, fez uso dos outros sentidos apurados para perceber o ambiente à sua volta. O focinho úmido logo captou traços de maresia, assim como a pele reconheceu o calor do sol mesmo sob a camada de pelos. Não o sol europeu, que espanta a névoa e acorda os músculos, mas aquele tipo de sol quente e aconchegante que ela só sentira em um único lugar. Aquele era o sol de sua pátria nas primeiras horas da manhã, envolvendo seu corpo como um dourado abraço de mãe.

A raposa espreguiçou-se com as patas para frente, sentindo as garras afundarem na areia. A maciez daqueles milhares de grãozinhos microscópicos trouxe junto uma torrente de lembranças.

Cora abriu os olhos devagar, acostumando-se à claridade, e ergueu a cabeça do chão. O mar era verde e sereno, brilhando e balançando calmamente sob um céu ainda levemente tingido do laranja da alvorada. Lá no horizonte era possível enxergar um conjunto de falésias, assim como um número impressionante de coqueiros e plantas da flora local. A areia era branca e fina, amarelando conforme ficava mais próxima da linha da água.

Seria possível ser a mesma praia?

E no entanto, era igualzinha a como Cora lembrava, embora agora estivesse totalmente deserta. A praia onde costumava passar as férias com os pais e os avós, muito antes da mãe e do pai trabalharem o tempo inteiro. Cora era apenas uma garotinha de cachos vermelhos trocando passos inseguros, mas as lembranças daquele lugar sempre a acompanharam. Memórias de uma alegria genuína e inexplicável, que tomava conta de seu corpo sempre que as ondas geladas passavam por cima de seus pezinhos descalços. Lembranças de risadas, de comida boa, de gosto de sal e de casa.

A raposa levantou-se, maravilhada. Seu corpo parecia estar despertando de um longo sono, era preciso fazer certo esforço, mas o visual compensava qualquer coisa. Arriscou o primeiro passo em direção ao mar, mas cambaleou para o lado, trôpega de repente.

Interessante. Alguma coisa estava diferente com ela, como se estivesse desequilibrada ou algo parecido. Arriscou um segundo passo e este saiu tão bêbado quanto o primeiro. Instintivamente olhou para trás, procurando o que havia de errado com a cauda, o pedaço de seu corpo destinado ao papel de leme e contraponto em suas passadas.

Não precisou procurar muito para identificar o problema: agora ela tinha duas caudas.

A segunda cauda tomara seu lugar empurrando a primeira para o lado, fazendo com que ambas ficassem centralizadas em relação à coluna. Elas eram praticamente idênticas, gêmeas de tufos vermelhos com pontas brancas.

Cora tentou mexê-las e descobriu que não podia movimentá-las de forma independente. As caudas balançavam e ondulavam ordenadamente, de um lado para o outro. Experimentou sentar e enrolá-las em volta do corpo: ficavam tão distintas dessa forma. Era quase como usar um manto.

Enquanto descobria e familiarizava-se com a nova cauda, Cora foi lembrando de tudo. Os eventos que a levaram até ali, a conversa com Mahira e também a promessa que fizera a Eloise. Seu peito apertou em uma mistura confusa de sentimentos.

Porém, aquele mar, aquele vento, aqueles cheiros...eles pediam uma comemoração, eles tinham o poder de infiltrar a felicidade dentro das pessoas. Ela era uma kitsune de duas caudas agora, não era? Aquela só podia ser uma boa notícia.

Cora sorriu, permitindo sentir-se feliz. Ela evoluíra, ela havia conseguido. Descobrira seu verdadeiro eu e aceitara sua natureza.

A raposa vermelha partiu de repente, trotando pela orla. Ainda bambeava para os lados, mas não importava. A cada tropeço era amparada pela areia, levantando com igual animação e imprimindo mais força e velocidade às patas compridas.

Dons de Inari - Parte IOnde as histórias ganham vida. Descobre agora