Capítulo CV - A sensação de quê?

62 11 31
                                    

Wandinha Addams

[ ... ]

  O tempo me deixa inquieta. O nevoeiro lá fora sendo acariciado pelo choro sereno das nuvens me deixa reflexiva de uma maneira especial. As sombras entre as árvores ao fundo me levam para momentos separados de mim eternamente por uma linha tênue nomeada justamente de tempo.
   Idade.
   Amadurecimento.
   Crescer.
   Sofrer.
   Recomeçar.
   São palavras que atacam minha mente quando meus olhos encontram a melancolia do clima.
   A vista através dessas portas de vidro imaculadas carregam muito mais significado do que aparentam. E quero muito que tenham importância também para Allan. Quero plantar memórias na cabecinha jovem e inocente do meu filho. Quero que esse tempo maravilhoso e cinzento seja marcado para sempre em suas lembranças. Assim, toda vez que se deparar de manhã com um dia como esse será bombardeado com memórias deliciosamente sombrias.
   Seus fios de cabelo escuros estão surpreendentemente lindos, cada vez maiores. As sutis curvas que as mechas fazem nas pontas tem todo o meu maldito coração. Os olhos tão escuros e dominadores agora repousam fechados, e seu rostinho delicado descansa em meu ombro. Allan só tem 2 meses de nascido e já não sinto que minha vida é a mesma. É como se uma tempestade tivesse me carregado para longe, me conduzido para um lugar imensamente mais bonito.
   Fecho meus próprios olhos e me inclino na direção do meu bebê. Nossas peles se encontram e as temperaturas se chocam, injetando amor diretamente nas minhas correntes sanguíneas. O som das gotas batendo no chão parecem ficar mais iluminados, já não preciso abrir os olhos para sentir as emoções da chuva intensamente. É isso que quero que Allan sinta no instante em que o choro do céu comece a cair na terra.

   Então sou presenteada com o toque fervente de uma mão no meu outro ombro. Toque esse que eu também não preciso estar de olhos abertos para sentir reverberar profundamente em meus ossos. Como se a sensação de seus dedos sobre mim não fosse suficiente, seus lábios tratam de me estilhaçar por completo. Seu beijo repousa em minha pele, trazendo consigo um sorriso aos meus lábios enferrujados.
   Abro os olhos e encontro suas íris claras colidindo com as minhas.

— Ele está mais tranquilo? — sussurra roucamente na base de meu ouvido.

— Está melhor. Se acalmou com o começo da chuva — murmurei de volta.

   Então meu marido vem à minha frente, e observa o nosso bebê relaxando. Em pouco tempo suas carícias já alcançaram os fios sedosos de Allan.

— Reparou em como o cabelo dele é bonito para uma criança assim tão pequena? — perguntou.

   Dou uma conferida em Allan só por um segundo.

— Reparei nisso, ele é perfeito — sem querer, mas ao mesmo tempo desejando isso mais do que nunca, eu aperto meu filho entre os braços. Não o suficiente para feri-lo, no entanto, seu sono acaba interrompido.

— É o ser humano mais perfeito que eu já vi, Wan — Galpin comenta enquanto beija o pequeno — Acordado ainda consegue ser mais lindo. Ele se parece muito com você.

— Talvez... Fique com ele, papai. Eu quero pegar um copo d'água.

   O corpo delicado de Allan desliza dos meus braços para os do pai. Os dedos se firmam como âncoras no filho. Em seu abraço, Allan assume o valor de uma jóia de preciosidade incalculável. Meus olhos cintilam quando fitam o sorriso realizado de Tyler.
   Passos meus se fazem audíveis em direção a saída do quarto. É curioso pensar que quase nada mudou desde que nos mudamos para cá. Ainda lembro vividamente da noite em que encontramos o nosso lar, a noite em passamos a chamar de casa um ambiente diferente daquele lugar asqueroso que foi palco para algumas das minhas maiores desgraças. Quando estava fechando a porta uma promessa sussurrada encontra meus ouvidos:

Eu vou ser o melhor pai para você.

   E então o silêncio recai sobre nós, meus dedos soltam discretamente a maçaneta e eu me guio até a cozinha com a frase percorrendo o meu crânio durante o caminho. Qualquer um que escutasse acharia que é apenas um momento meigo entre um pai e um filho, mas eu não sou qualquer pessoa. Sei no que Tyler estava pensando quando prometeu aquilo ao nosso filho. Sei que o abandono do pai vai o ferir para sempre. Saber que sempre foi assim e que sempre será o machuca demais.
   Às vezes receio que as cicatrizes deixadas pelos traumas nunca desapareçam, principalmente quando paro para notar que as minhas ainda sangram mesmo depois de tanto tempo. Mas feridos ou não, estamos juntos traçando vidas no desenho do mundo. E enquanto eu estiver trilhando meu caminho sangrento junto a ele nunca haverão feridas suficientes para me matar.
   A água desce fresca pela minha garganta.
   Quando volto para o quarto encontro meu marido e meu filho deitados na cama.

Tyler Galpin

   Allan Addams Galpin... Esse é o nome do garoto que eu mais amo nesse mundo. Quando meus olhos encontram suas grandes e negras íris, meu coração erra alguma batida e passa a pular dentro do meu peito como se estivesse tentando recuperar o tempo perdido.
   Wandinha se acomoda ao meu lado no colchão, fazendo nosso pequeno espiar por entre as pálpebras fechadas.

— Você é um pai perfeito para o Allan. — sua voz doce e congelante toma o controle da minha cabeça.

   Por um instante me assusto ao ouvi-la afirmar isso.

   Eu repenso.
   Meu pai foi um dos piores pais do mundo. Hoje não nos falamos mais e é como se estivéssemos mortos um para o outro. Literalmente sumiu do mapa e da minha vida como a sombra se apaga perto da luz. Porém não existe iluminação que não venha acompanhada de sua própria sombra. Ainda posso senti-lo perto, acompanhado da cobrança que eu imponho a mim mesmo todas as manhãs. A promessa de nunca ser como ele.
   Ainda sinto o passado batendo à minha porta todos os dias... São ex-namoradas maquiavélicas, irmãos inesperados, mães cúmplices em armações contra seus filhos, pais assassinos, mortes inocentes, amizades falsas... Tudo ainda sopra seus dramas amargos em mim junto com o ar fresco da brisa.
   No entanto é mais fácil lidar com isso a cada novo dia que passa. Não espero que tudo seja apagado da minha memória quando eu acordar uma certa manhã. Espero, na verdade, que o que aconteceu jamais volte a nos atormentar no futuro novamente. Apenas. Se coisas do tipo não atormentarem meu filho quando for a vez dele de ser o protagonista da sua própria história eu estarei tranquilo.
   Mas por quê tenho a sensação de que não vai ser assim?

— Você acha? — meu sussurro escapa.

— Eu tenho certeza. Você não precisa se prender a essa insegurança. Só o fato de sempre temer ser um pai ruim já faz de você um pai excelente.

   Agradeço todos os dias ao universo por colocar essa mulher na minha vida.

   Eu me viro com cuidado na direção dela, ainda com Allan nos braços. E então encosto meus lábios nos seus, breve e lentamente.

— Tyler, vamos jantar amanhã no restaurante? — Wandinha comenta enquanto puxa as cobertas para si.

— Vamos — eu sorrio — Mas agora durma, Treva.

— Me acorda se precisar de ajuda com o nosso monstrinho. — ela já está longe, com tanto sono que seu tom de voz ecoa como se estivesse morrendo.

— Não vamos precisar...

   Eu acaricio meu filho.

Amor SangrentoWhere stories live. Discover now