Tomou um banho quente e, depois de vestir alguma coisa confortável, desceu as escadas, sentou-se em frente ao piano e levantou a tampa de fundo. As teclas estavam amareladas e com poeira. Havia tanto tempo que ela não tocava em casa que o instrumento ficou desregulado. Ela abriu a caixa e afinou as cordas com cuidado.

Ao ouvir o barulho que Giselle fazia, José desligou a televisão, pois sabia que o som atrapalharia sua filha. Ele tomava chimarrão enquanto assistia o jornal e esperava o jantar ficar pronto.

A jovem começou a tocar alguma sinfonia de Mozart, com muitos erros, conforme sua memória se lembrava. Não estava preocupada em acertar as notas e acordes e não seguia nenhuma partitura. Depois de terminá-la, tocou outras músicas populares até sentir dores nas costas por causa de sua má postura.

José a observou durante todo esse tempo. Quando a filha parou de tocar para se alongar, ele deixou o sofá e se aproximou dela, empurrando-a para o lado para que ele coubesse na banqueta do piano também.

— Tu não pareces bem — falou, apertando algumas teclas. Ele não entendia nada de música, mas gostava do som e admirava muito sua caçula por entender como toda aquela geringonça funcionava. A parte de dentro do piano era assustadora para ele, que trabalhava com pintura desde a mocidade.

— Sinto que estou no caminho errado — Giselle contou.

— Tu não gostas do que faz? Arquitetura é um bom ramo. Mas lembro que na época do vestibular, tu estavas confusa... ainda duvida?

— Naquela época — ela disse, encolhendo os ombros e tomando um gole do chimarrão do pai —, eu fiquei encantada em como a Clarisse falava sobre o curso. Tem o lado artístico e criativo que combina muito com ela e o aspecto social, que me conquista. A ideia de estar com ela nessa fase da vida também me atraiu, sabe? Mas sinto que falta alguma coisa... Já se sentiu completamente perdido?

José franziu o cenho.

— Hmm... E quem é que não se sente? — confrontou, de forma descontraída.

— Já passou da hora de eu arrumar um emprego, como todo mundo. O Zé Júnior e o Marcos não param de me provocar por ser a caçula mimada.

— Tu sabes que não precisa, se não quiser — o pai falou, ainda mexendo nas teclas. — Aqueles dois bocós nasceram num momento diferente e já tocam as próprias vidas, por isso pegam tanto no teu pé. Há anos, tua mãe não precisa trabalhar. Estou dando conta de todas as nossas despesas e você pode se dedicar aos estudos e ao voluntariado sem se preocupar. Mas não vou me opor a isso. Trabalhar te trará novos ares. A propósito, preciso de um ajudante.

— Acho que é disso o que eu preciso. Vou deixar meu currículo com o RH — ela brincou, sabendo que o pai lidava com tudo sozinho e de maneira informal.

— Ha, ha! Um pouco de tinta nas mãos e nos cabelos não faz mal a ninguém. — Ele tomou de volta seu copo das mãos da filha e bebeu. — Mas o que te deixou tão borocoxô?

— Ah... outra aluna desistiu do coral. Não pude fazer nada — ela respondeu, roubando uns goles do chimarrão do pai enquanto falava.

— Entendo... As desistências sempre te abatem.

José abraçou Giselle pela cintura e ela apoiou a cabeça sobre o ombro dele.

— Tu queres desistir? — ele prosseguiu.

— De quê? Da carreira ou dos alunos?

— Eu acho que o que tu fazes pelas crianças da comunidade é muito legal. A vida é muito dura e não dá pra fazer o que gosta sempre. Temos que engolir as verdades dolorosas, às vezes, e fazer o que é preciso. Perder pessoas ou paralisar sonhos, por exemplo. Mas nada disso significa que temos que desistir.

O Alvorecer de EarisWhere stories live. Discover now